sexta-feira, 20 de abril de 2007

[surtos e paranóias] A estranha dialética do catolicismo

A ESTRANHA DIALÉTICA DO CATOLICISMO

“Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e não idêntica. Através da divindade, a linguagem passa da tautologia à linguagem. O conceito, que se costuma definir como a unidade característica do que está nela subsumido, já era desde o início o produto do pensamento dialético, no qual cada coisa só é o que ela é tornando-se aquilo que ela não é. (...) Mas essa dialética permanece impotente na medida se desenvolve a partir do grito de terror que é a própria duplicação, a tautologia do terror.”
(Adorno – Horkheimer, Dialética do esclarecimento, p. 29)

Ser ou não ser? À clássica questão do enlouquecido Hamlet, nós, os loucos dialéticos, respondemos: ambos – e ao mesmo tempo! Pois negar o princípio da identidade da lógica clássica é nosso ponto de partida: para nosso intelecto insano e nosso olhar distorcido, tudo que é só pode ser precisamente através do que não é. E logo aqui, de onde partimos, já começa nossa incompreensão.

Nós vemos o ser não sendo e o não-ser sendo. Nós vemos coisas sendo o que são e o que não são. Vemos árvores que são mais do que árvores, sendo árvores através do que não é árvore. Nossos opositores, talvez ainda um tanto atordoados com nossa loucura, então nos perguntam: como é possível que a árvore que vejo, que toco, que cheiro, – e quem sabe – que ouço e que degusto, a árvore tal como dada ao meu “intelecto conceituador” são e equilibrado, seja não-idêntica a ela mesma? Ora, árvore é árvore!

Que não se enganem! Nós, os loucos, não estamos negando a realidade e não estamos vendo o transcendente em todas as coisas! Somos mais “realistas” do que os “realistas”, porque aquilo que queremos da realidade é aquilo mais que não se apresenta aos nossos olhos e ouvidos, que não se mostra sob a luz magnânima do intelecto conceituador – aquilo que, apesar de real, os “realistas” desprezam. E quanta diferença faz! Ah, se eles soubessem!

Mas se a árvore que era e não era árvore, que era árvore e sede do mana ao mesmo tempo, já era prenúncio da dialética, então também os comprometidos com o transcendental podem experimentar, ainda que incipientemente, um pouco de nossa loucura. Os católicos, por exemplo, comem pão que não é pão e tomam vinho que não é vinho – pão que é carne e vinho que é sangue. Portanto pão e vinho que, como pão e vinho, são portadores da “substância divina” e, assim, já não são pão e vinho. O pão que todos os meus sentidos dizem ser pão e o vinho que todos os meus sentidos dizem ser vinho são, na verdade, não-idênticos a si mesmos. Quem diria! Dialéticos? Logo eles?

A diferença é que para nós, os loucos assumidos, basta que a dialética mantenha seus pés no chão. Assim é que a dialética se torna uma força de superação – pois se, ao invés da árvore, olhamos para a sociedade, o que vemos é um todo cheio movimento, de contradições internas, que não cessa de querer ser o que não é. A estranha e incipiente “dialética” do catolicismo, pelo contrário, quer tirar os pés do chão, quer pular da terra para o céu e assim não faz mais do que reproduzir o mesmo horror da duplicação que apavorava os primitivos. Não é mais do que a “dialética” da impotência e da submissão do homem de carne e osso diante do desconhecido (o desconhecido da natureza, do destino, da morte, tanto faz) que, descarnado e sublimado, recebe dos homens o nome de “deus”.

[NJ] Desiguais, consumidores e juristas

DESIGUAIS, CONSUMIDORES E JURISTAS

“Se é claro que a produção oferece o objeto do consumo em sua forma exterior, não é menos claro que o consumo põe idealmente o objeto da produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim.”
– Karl Marx

Juristas costumam ser pessoas pouco simpáticas à inovação; ainda assim, de tempos em tempos se sentem sufocados num mar de tecnicismos antiquados e se vêem obrigados a deixar que “novos ares” adentrem seus domínios. Como conseqüência, logo após cada inovação quase sempre se segue uma onda de superestimação do “novo” – até que, de novo, o “novo” seja transformado em tecnicismo. É o caso do direito do consumidor.

Esse ramo talvez já nem seja a “vedete” do momento, mas o motivo da empolgação ainda bastante viva dos juristas em geral a seu respeito (embora alguns civilistas mais tradicionais continuem pouco receptivos) é a pretensa “ruptura”, nele realizada, da igualdade formal absoluta entre consumidor e fornecedor. “Ruptura”, nesse caso, significa o seguinte: o direito reconhece que, numa relação jurídica específica, há uma desigualdade pré-avaliada entre uma parte “mais poderosa” e outra “menos poderosa”, oferecendo certa proteção a esta última. Em outras palavras, nada além do que o direito do trabalho, décadas antes, já consagrara quanto à relação entre capitalista e trabalhador.

Mas o que não se costuma levar em consideração é o que há por trás desse reconhecimento de desigualdades e até onde esse reconhecimento se estende. Certo é que esse “ar fresco” não surgiu pura e simplesmente da “cabeça quente” de ninguém. Suas raízes estão fincadas muito mais fundo.

A realidade na qual surge o direito do consumidor é a da exclusão permanente do trabalho do processo produtivo. O problema já não é, como na idade de ouro do direito do trabalho, garantir que o trabalhador não deixe de levar sua força de trabalho até a máquina: é a máquina que substituiu, e substitui cada vez mais, o trabalhador. Excluído da produção, o trabalhador está também excluído da circulação: sem salário, como consumir? E o capitalismo engendra assim, por si mesmo, uma nova crise: sem consumidores, de que servem as máquinas que sozinhas produzem mais, melhor e mais barato?

Se já não é possível produzir para um mercado universal – porque há um contingente crescente de excluídos do mercado – a alternativa para manter o fluxo econômico e as taxas de lucro é levar os que podem consumir a consumir cada vez mais. Não por acaso tanto se fala que vivemos numa era de consumismo desmedido, de consumo insaciável de coisas de utilidade efêmera: disso depende a sobrevida do capitalismo.

O direito do consumidor aparece aqui não como dádiva ou progresso, mas como necessidade. Se alguma desigualdade é reconhecida entre fornecedor e consumidor, não é porque não deve existir desigualdade de poder econômico: é porque o excesso de poder não deve obstruir o consumo. Se alguma proteção é oferecida ao consumidor, não é porque ele é o “menos poderoso”: é porque ele deve consumir mais. Os que estão fora do universo do consumo estão também fora dessa – e, em verdade, de qualquer outra – proteção.

O limite da “ruptura” com a igualdade jurídica formal é que as desigualdades tornadas visíveis mantenham invisíveis as desigualdades essenciais. Reconhecer que o consumidor é a “parte fraca” na relação de consumo: isso é possível – reconhecer que alguém pode ser a “parte fraca” em todas as suas relações sociais: isso é possível? Se pensarmos que os ramos em que a tão exaltada “ruptura” é consagrada são o direito do trabalho e o direito do consumidor – portanto produção e consumo, duas esferas essenciais ao capitalismo – fica claro que esse superficial reconhecimento de desigualdades apenas faz com que as desigualdades profundas e essenciais da sociedade capitalista funcionem melhor...

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/04/2007]

[NJ] Sem terra, sem direito

SEM TERRA, SEM DIREITO

Santos ou pecadores, vítimas ou opressores, os sem-terra têm a peculiaridade de despertarem esperança e temor na mesma medida. Para aqueles que anseiam por mudança, os sem-terra personificam a capacidade de, contra tudo e contra todos, fazer valer a indignação, a resistência, a ação. Para aqueles que, pelo contrário, temem a mudança, os sem-terra representam o potencial de desordem que ameaça a ordem estabelecida.

Que direito têm eles de tomar a propriedade alheia? – argumentam seus opositores. Ora, de um ponto de vista estritamente jurídico a resposta é simples: nenhum direito. O proprietário detém o título de propriedade privada, ainda que improdutiva sua terra. Se o poder público possui, sob o pretexto da “função social” da propriedade, a prerrogativa de expropriá-lo para promover a reforma agrária, isto é outra questão – os sem-terra permanecem, diante daquela senhora vendada, meros turbadores da lei. O duelo se dá entre o “supremo” direito de propriedade, constitucionalmente assegurado e fartamente esmiuçado pelo direito civil, e o absoluto não-direito.

Falar em algo como um “direito” dos sem-terra só é possível se tomamos a palavra “direito” num sentido diferente. Os sem-terra são o produto de uma ordem social injusta, de um esquema de distribuição de terras que simplesmente exclui tudo que não se rende ou não interessa ao domínio do capital. Negar-lhes o direito a terra implica reconhecer que são obrigados a consentir com a injustiça, isto é, implica reconhecer que, além de despossuídos, socialmente excluídos e desamparados, os sem-terra não têm outra opção senão silenciar e aceitar sem resistência sua condição miserável.

Contudo, sendo mais do que mero direito à sobrevivência, sendo “direito” de produzir apesar do capital, “direito” de contrariar o capital e toda a ordem social nele fundada, o “direito” dos sem-terra a terra não é, nem pode ser, reconhecido como direito em sentido formal. Isto porque, embora decidido politicamente, o direito é a exclusão da política: ele encarna a universalidade e a segurança, em oposição à oportunidade e à conveniência da política. E a reivindicação dos sem-terra é precisamente uma reivindicação política.

Qualquer semelhança entre o “direito dos sem-terra” e o “direito de greve” não é mera coincidência. No início do capitalismo industrial, as greves firmaram-se como principal instrumento de reivindicação dos trabalhadores. Eram uma afronta direta ao capital e por isso encontravam violenta repressão por parte do Estado. Assim como no caso dos sem-terra, negar aos trabalhadores o “direito de greve” implicava condená-los à resignação, implicava reconhecer aos capitalistas o poder de submetê-los às mais inumanas condições de trabalho, sem resistência.

Após décadas de luta, um direito formal de greve começou a ser positivado nos mais diversos países. No entanto, foram estabelecidas as seguintes restrições: para ter amparo legal, a greve deve se limitar a reivindicações de caráter profissional (salários, jornada, férias, etc.) e não pode obstruir de forma absoluta a produção. Em outras palavras, a greve só é legal se não tem caráter político – se o tiver, o capitalista pode procurar o Poder Judiciário, que declarará a greve abusiva e fará recair sobre os trabalhadores o peso da condição de violadores da lei. O reconhecimento do direito de greve foi, como se vê, mais uma conquista do capital do que dos trabalhadores. Não foi a consagração, mas a “domesticação” da greve.

Exaltá-lo como signo prognóstico de uma mudança social vindoura seria um exagero, mas cumpre reconhecer que o movimento dos sem-terra é, no interior deste misto de capitalismo avançado com coronelismo rural que é a sociedade brasileira atual, um elemento não-domesticado e profundamente incômodo. Em português claro, uma “pedra no sapato” da ordem estabelecida e da classe social por ela beneficiada. E isso mesmo não tendo os sem-terra direito algum... Ou melhor, precisamente por não terem direito algum – é no fato de não terem direito que reside toda a sua força.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 11/03/2007]

[NJ] Direitos... humanos?

DIREITOS... HUMANOS?

“Ninguém fala com mais paixão de seus direitos do que aquele que no fundo da alma tem dúvida em relação a esses direitos. Levando a paixão para o seu lado, ele quer entorpecer a razão e suas dúvidas: assim adquire uma boa consciência, e com ela o sucesso entre os homens.”
– Friedrich Nietzsche

A teoria tradicional diz que os direitos humanos são os direitos inatos do gênero humano, isto é, aqueles que cada um dos membros da espécie humana possui em imediata decorrência de sua condição humana, aqueles que todos os seres humanos possuem pelo simples fato de serem humanos. Mas o que a teoria não responde e o que os defensores dos direitos humanos raramente se perguntam é: quem é esse “humano” do qual decorrem e para o qual se atribuem tais direitos?

Certamente não se trata de adotar aqui o ponto de vista da esquerda humanista, que vê na ampliação e na efetivação dos direitos humanos a salvação do mundo. Pelo contrário, é necessário submeter tal visão à crítica. Mas a uma crítica filosófica séria, não a crítica tosca e ingenuamente antidemocrática do tipo que anda tão em moda entre os “inimigos da bandidagem” da mídia e entre aqueles cuja saudade do autoritarismo de outros tempos persiste.
Quem pensa que os direitos humanos só devem ser aplicados aos “humanos direitos” comete o absurdo de julgar a si mesmo como “mais humano” do que os outros – aos desviantes, marginais, criminosos, enfim, aos “menos humanos”, o isolamento, o tratamento cruel, ou, quem sabe, um número tatuado no braço e a câmara de gás. De outro lado, quem vê nos direitos humanos uma “tábua de salvação” ignora a realidade subjacente ao discurso, uma realidade pouco menos terrível do que a câmara de gás.

A dupla e paradoxal incongruência na qual incorrem os direitos humanos é a de serem ao mesmo tempo abstratos demais e concretos demais. São abstratos demais por submeterem todo e qualquer ser humano a um mesmo modelo de “homem em geral”, ao qual é atribuído o mesmo rol de direitos: o homem vivo, de carne e osso, que é um ser único e que integra sua própria realidade de forma também única, não aparece aqui. O empresário e o operário, o branco e o negro, o católico e o muçulmano, o milionário e o mendigo, todos são, por esse ponto de vista, “homens em geral”, portadores dos mesmos direitos à igualdade, à liberdade, à segurança, à propriedade, etc. Para azar de todos, as peculiaridades, as dificuldades específicas e as necessidades reais de cada um são pura e simplesmente deixadas de lado.

Mas os direitos humanos são também concretos demais: apesar da sua universalidade aparente, o “homem em geral” tem sua origem bem determinada. No jogo do mercado, aquele que é livre e igual, que se porta como proprietário abstrato, despido de suas peculiaridades de homem vivo e real, é o proprietário do capital, o burguês. É para ele, e tão-somente para ele, que os direitos humanos fazem total sentido. Para os demais, tomar parte nos direitos humanos significa tomar parte na grande máquina do capitalismo. A atribuição abstrata de igualdade, liberdade e propriedade não torna ninguém realmente igual, livre e proprietário, mas apenas garante a participação de todos na grande esfera da circulação de mercadorias – só que sem mercadoria alguma, exceto a mercadoria à qual cada um foi reduzido.

Para o burguês, os direitos humanos não garantem nada que ele já não tenha. Para os demais, esses direitos não significam outra coisa senão jogar o mesmo jogo dos proprietários do capital, mas sem capital. Para os não-proprietários, liberdade e igualdade não são outra coisa senão dominação e exploração – todos livres e iguais, para que possam vender os únicos bens de que dispõem: o próprio corpo, a própria alma.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 04/02/2007]

[NJ] Dianteira e contra-mão

DIANTEIRA E CONTRA-MÃO

“Tu quoque, Brute, fili mi!”
– Júlio César

A velha lição cristã diz que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. Um crítico radical da sociedade capitalista espera ansiosamente pela ascensão dos “últimos”, mas a verdade é que a história do séc. XX e deste início do séc. XXI parece mostrar que apenas a segunda parte da máxima se confirma: ora ou outra, os “primeiros” é que acabam sendo rebaixados.

Um dia, os judeus foram os primeiros. Enquanto as luzes da ordem feudal se apagavam, eram eles que, por velhas trilhas, de feira em feira, de cidade em cidade, carregavam o capitalismo ascendente nas costas, disseminando o comércio pela Europa. O judeu mercador, o judeu banqueiro, o judeu usurário: figuras prototípicas, autênticos modelos do indivíduo burguês moderno, portador abstrato de direitos, sujeito econômico isolado. Na infância do novo modo de produção, eles foram, sem dúvida, pajens muito dedicados.

Gratidão, no entanto, é algo que não se pode incluir entre as qualidades do capitalismo. Se saltamos alguns séculos, encontramos os judeus vítimas do mesmo modo de produção que ajudaram a difundir. Sempre foram comerciantes, sempre estiveram no mercado, razão pela qual sua imagem foi longamente associada à vertente mercantilista do capitalismo. Mas e quando o próprio mercado deve ser deixado para trás? Quando o assim chamado “capitalismo de Estado” nazista pretendeu substituir o “anárquico” mercado pela “ordem” estatal, os judeus, outrora pioneiros, se converteram na encarnação do obsoleto, do retrógrado, do entrave ao desenvolvimento da nação. Da dianteira da história, passaram à contra-mão. A eles foi atribuída toda a culpa que vagava “sem dono”, sobre eles recaiu todo o ódio que se acumulava sem descarga. Em nome do progresso e da razão, eles deveriam ser eliminados. Foram, por fim, conduzidos a Auschwitz...

Hoje semelhante inversão se repete, ainda que seja outra sua vítima. Enganam-se os adeptos da tese de que a humanidade aprendeu e evoluiu com as atrocidades do seu passado. O “novo” capitalismo também tem seus inimigos da vez, que nem sempre foram inimigos.

Também os muçulmanos estiveram, um dia, na dianteira. Enquanto os europeus se fechavam nos feudos, foram eles que mantiveram a arte do comércio viva. Foram eles que preservaram grande parte da antiga cultura ocidental, que desenvolveram as técnicas de navegação, que alcançaram progressos notáveis na matemática. Séculos depois, quando o feudalismo europeu iniciou sua decadência, foi a partir do comércio com os muçulmanos que Veneza e Amalfi construíram seus impérios, que mercadorias voltaram a ser intercambiadas e que moeda voltou a circular em larga escala. Mesmo o direito comercial romano, ainda hoje base do nosso direito comercial, foi em sua maior parte conservado pelos muçulmanos, que o legaram via Bizâncio, e posteriormente reintroduzido entre os “herdeiros de Roma” da Europa, onde há muito havia sido esquecido.

O contato com os muçulmanos foi, portanto, condição para a retomada da atividade mercantil na Europa; a partir daí a burguesia cresceu, se consolidou, se tornou rebelde, se tornou revolucionária: assim foi aberto o caminho para o capitalismo. Mas agora isso pouco importa. Para o “novo capitalismo” de hoje, o da globalização, os muçulmanos representam o antiquado, o entrave que deve ser sacrificado. No mundo do capital sem fronteiras, da extinção do trabalho, da uniformização cultural, aqueles que não estão dispostos a abrir mão de suas tradições e de seu modo de vida em geral, que não estão dispostos a aceitar uma posição submissa no cenário internacional, são a máxima inconveniência. O muçulmano assume então o lugar do alienígena, do opressor, da ameaça: o fundamentalista, o machista, o terrorista; em suma, o bárbaro. Ao muçulmano toda a culpa, sobre ele todo o ódio... Os muçulmanos estão agora na contra-mão do “novo”: para seguir adiante, a grande máquina do capitalismo não hesitará em esmagá-los.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/01/2007]

[NJ] Educar para quê?

EDUCAR PARA QUÊ?

“O ambiente em que é educada tende a tornar cada pessoa cativa, ao lhe pôr diante dos olhos um número mínimo de possibilidades. O indivíduo é tratado por seus educadores como sendo algo novo, mas que deve se tornar uma repetição.”
– Friedrich Nietzsche

A educação no Brasil é um problema. E, como desde há muito se sabe, um problema grave. Aparece diariamente na grande mídia, nos debates acadêmicos, nas conversas de botequim. Tem apelo o bastante para, na última corrida eleitoral, ter servido de base exclusiva para a campanha de um dos candidatos a presidente. Enfim, é uma grande preocupação nacional.

As discussões sobre a questão são sempre centradas sobre os mesmos pontos: a quantidade e a qualidade. Para alguns, o cerne do problema está nos números: a taxa de analfabetismo, o número de vagas, os percentuais de afro-descendentes e de alunos provenientes de escolas públicas nas universidades, etc. Para outros, o problema é de fundo: a preparação dos professores, a adequação das grades curriculares, o rigor no controle de qualidade dos cursos superiores, etc. Cada lado tem sua dose de razão, a despeito de, no geral, serem conflitantes (nesse campo, quantidade e qualidade costumam ser inversamente proporcionais).

Há, contudo, um outro aspecto do problema, usualmente negligenciado: educar para quê? Quero dizer, há também uma deficiência de orientação, de postura, de “filosofia”, no modelo educacional corrente. Verdade é que a educação não serve, ou ao menos não tem servido, para formar sujeitos pensantes, críticos, criativos, mas para fazer cópias em série, seres passivos, depósitos de informação semi-processada.

Para os espíritos mais críticos, mais insubordinados, mais criativos, mais sedentos de conhecimento, que conseguem sobreviver apesar da educação a que são submetidos – o que é raro –, a escola pode ser um verdadeiro martírio. Eles não têm liberdade para escolher o que querem estudar, apenas um currículo totalmente rígido a ser cumprido; não têm autonomia para pensar por si mesmos, apenas a imposição de repetir o que seus mestres lhes transmitem. Mais tarde, quando o estudante pretende ingressar na universidade, encara exames vestibulares que não avaliam capacidade de raciocínio, senso crítico, perspicácia, mas tão-somente poder de reter e repetir informações. Uma vez aprovado, essa será a virtude dele exigida: a universidade o encara como um “saco” que guarda informações sem processá-las, engole sem digerir. É apenas por iniciativa do próprio saco, quer dizer, do próprio estudante, que a universidade pode ser aproveitada de outras maneiras (e é grande mérito de uma universidade deixar entreaberta, ou ao menos destrancada, a porta para tal possibilidade).

A finalidade primordial da educação deveria ser produzir emancipação, isto é, fornecer ao jovem os meios para ir além da clausura das visões dominantes e do pensamento pronto, para encontrar por si seu lugar na realidade da qual faz parte, para avaliar as possibilidades de modificar esta realidade. Hoje, no entanto, a educação está voltada para outro fim: o mercado. A própria educação se tornou um grande e lucrativo negócio. Trata-se de treinar profissionais adequados e não de formar pensadores: ou produz em larga escala “apêndices de máquina” semi-conscientes, muito adequados à função de apertar os botões e puxar alavancas sem ponderar muito a respeito, ou produz indivíduos qualificados estritamente de acordo com as demandas do mercado. Ao invés de fomentar o desenvolvimento de potencialidades, de incentivar uma postura ativa perante a realidade, a educação cuida de reduzir o novo ao velho, de colocar a massa original e única de todo jovem nas mesmas fôrmas de sempre. Sem se considerar isso, de nada adianta uma educação quantitativamente mais abrangente ou qualitativamente mais satisfatória: estaremos apenas formando mais e melhores cópias.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 02/12/2006]