domingo, 15 de julho de 2007

[NJ] O mal do higienismo

O MAL DO HIGIENISMO

Dia desses me meti numa dessas reuniões de CONSEG (Conselho Comunitário de Segurança). Não é algo que ousaria recomendar aqui, exceto àqueles cuja paciência excede o normal, o que não é o meu caso. Mas calhou ter ido, por algo que presenciei. Depois de longas (e em sua maioria infrutíferas) discussões, surgiu uma sobre os mendigos do bairro. Uma moça exaltada reclamava da sujeira, do mau cheiro e da “poluição visual” representada pelos moradores de rua, cobrando uma “solução” definitiva e urgente por parte das autoridades. Uma representante da prefeitura, sã, tentou argumentar dizendo que os moradores de rua são de “carne e osso” e portanto não podem ser simplesmente “jogados numa fornalha”. Mas a moça insistia, parecia realmente querer vê-los queimar vivos. Então, para pôr fim ao bate-boca, um delegado que também integrava a mesa aduziu que, “não sendo ilícito residir na via pública”, nada podia ser feito, visto que “infelizmente existe o direito de ir e vir”.

Julgo ser desnecessário comentar a opinião do delegado. Ela apenas representa o retrógrado, a persistência de um pensamento autoritário e antidemocrático que ainda é mais comum do que se pensa. A opinião da moça, por outro lado, revela um problema hodierno e cada vez mais freqüente – talvez até mais grave, precisamente por soar mais tolerável: o higienismo.

Não que o higienismo seja coisa nova. Pelo contrário. Trata-se de uma idéia fixa típica da burguesia, desde os seus primórdios. Por onde anda, o que veste, o que come, o que fala e até o que pensa: o burguês sempre quer fazer do seu mundo um mundo limpo, desinfeto, asséptico. É o reflexo do autocontrole, da personalidade fixa, da retidão absoluta. Ao contrário do nobre, de sangue azul, que com a ralé se relaciona como azeite com água, o burguês, de sangue comum, precisa, por uma questão de conservação do seu “eu”, se diferenciar dos que estão abaixo. Daí a limpeza como caminho de vida, como “status”, como fator que distingue.

Mas o higienismo não se comporta com o mesmo comedimento que exige. Num estalo de dedos ele se torna obsessão e se espalha como o toque de Midas, que tudo quer fazer reluzir. Nem parece que estamos falando da mesma civilização que no final do medievo era adepta da prática de esvaziar penicos pela janela. Que ainda no início do séc. XX se espantava com os “excessos” da higiene pessoal dos imigrantes japoneses. A verdade, porém, é que o higienismo não trata de não produzir sujeira, mas sempre de não vê-la, não tocá-la, comportar-se como se ela não existisse. Paradoxal, no mínimo, em tempos nos quais produzimos poluição e dejetos em volumes inacreditáveis. Talvez o óbvio não seja tão óbvio assim: o caminhão do lixo e o cano de esgoto não fazem milagres, apenas levam a sujeira para longe de quem a produz.

Exacerbada, esta velha prática de varrer o pó para debaixo do tapete conduz a dois grandes exageros. O primeiro deles é a compulsão de “higienizar” tudo até onde a vista alcança. A cidade de São Paulo está cheia de exemplos: a Praça da Sé, a Praça da República e parece que o próximo alvo será a região da “cracolândia”. Os métodos são sempre os mesmos: cuida-se de embelezar o cenário, jamais de resolver seus problemas. É uma “higiene” que muitas vezes destrói especificidades locais (o Mercado Municipal é o maior exemplo). Maquiagem que só disfarça imperfeições. Na realidade, os problemas são apenas empurrados para um outro lugar: para debaixo da ponte, para a periferia, para a favela, para o raio que os parta.

O segundo grande exagero é estender o higienismo até as pessoas, isto é, pretender qualquer espécie de “limpeza social”. De fato, há apenas um passo entre uma coisa e outra. Não causa incômodo que exista pobreza, miséria, vida degradada – o que incomoda é tê-las diante dos olhos. Daí o desejo de tirar os mendigos do caminho – mas não de buscar as causas do problema. Daí os muros dos condomínios subindo mais e mais alto para não deixar ver a desgraça alheia do lado de fora – afastar, jamais distribuir. Daí a discriminação quanto à condição social, o índio sendo queimado em Brasília, a doméstica sendo espancada no Rio de Janeiro etc.

Limpeza social implica tratar pessoas como lixo – quando lixo mesmo é essa idéia tacanha e preconceituosa que se espalha sorrateiramente, muitas vezes sem que seus adeptos tomem consciência de suas conseqüências. O higienismo é o mal, o verdadeiro mal que cumpre esterilizar.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 08/07/2007]