quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

[NJ] Centenário - identidade e resistência

CENTENÁRIO - IDENTIDADE E RESISTÊNCIA

Não houve, em 100 anos de convívio, momento em que a cultura, as tradições e as contribuições dos imigrantes japoneses e seus descendentes tenham sido tão exaltadas como nas últimas semanas. Trata-se, em parte, do reconhecimento tardio pelo componente japonês na formação do Brasil – reconhecimento justo, diga-se, para aqueles que sofreram toda sorte de preconceito e perseguição até meados do século passado. Mas há um outro lado, que não deve ser negligenciado, relativo aos efeitos negativos que podem advir da superexposição.

O tom da grande maioria das reportagens que têm abordado a imigração japonesa é tristemente raso e caricatural – e não era de se esperar coisa diferente. Resume-se tudo aos olhos puxados, ao sushi e ao idioma incompreensível, como se só por isso se explicasse o que significa ser japonês, sem mais a acrescentar. É assim que a população em geral é semi-informada acerca de toda uma sua parcela e, o que me parece mais grave, é assim que netos e bisnetos de imigrantes japoneses estão sendo lembrados de suas origens.

A situação atual da “colônia japonesa” é de crescente desunião. E isto não apenas em função da natural e salutar integração na sociedade brasileira, mas também pelo fato lastimável do distanciamento e do esquecimento. A própria identidade do nipo-descendente, perdidas ou renegadas as suas raízes, parece esmaecer. Diante de tal contexto, a salvaguarda da memória e dos laços que unem a comunidade de origem japonesa exige uma atitude que não pode ser esperada dos meios de comunicação, mas deve partir da própria comunidade.

Não pretendo que os nipo-descendentes retomem a segregação e o isolamento de outrora, estratégia equívoca baseada no desejo de permanecerem japoneses “puros” fora do Japão. A atitude a que me refiro é de união, é certo, mas não de união com vistas a evitar a diluição do que resta de sangue e de cultura japonesas no caldo mais volumoso da realidade brasileira. A miscigenação fará com que pouco a pouco os traços físicos sejam descaracterizados, o avanço das gerações se encarregará de fazer perder grande parte da culinária tradicional e o idioma, que hoje já é pouco conhecido, será ainda menos no futuro. Ainda assim a sociedade brasileira carregará traços marcantes recebidos dos imigrantes japoneses, incorporados à própria cultura brasileira, tanto quanto os traços recebidos das demais nacionalidades que a constituíram.

Não é como japoneses, mas como brasileiros, ou melhor, como parte do que implica ser “brasileiro”, que os descendentes de japoneses devem manter sua identidade. Pois esta miscelânea que constitui o Brasil, que, dizem, é majoritariamente indígena, africana e portuguesa, é um tanto italiana, alemã e espanhola, é um pouco francesa, inglesa e holandesa, é também japonesa. É como integrantes dessa parcela que todos aqueles que compartilham uma origem japonesa devem ter consciência de si mesmos e é como guardiões de todo um legado incorporado à sociedade brasileira que devem ter consciência de sua unidade.

É razoável que cada indivíduo considere sua identidade e, mais ainda, sua história pessoal, como o caminho trilhado por seus próprios pés neste mundo. Mas não há história de um indivíduo só, não há caminho que simplesmente comece do nada. Nossos pés partem de algum lugar, até o qual foram levados por aqueles antes de nós, e em seguida avançam um tanto mais, até o ponto a partir do qual as futuras gerações caminharão. O lugar do qual partem os pés de todos os descendentes de japoneses foi conquistado através de meio mundo, foi aberto às custas de suor e lágrimas de seus antepassados, na luta por uma vida melhor longe da terra natal. Isto, que veio antes, deve guiar a direção do avanço. Esta deve ser a baliza de sua identidade.

O que ameaça a preservação dos traços de cultura japonesa não é o contato com o “não-japonês”, mas a tendência uniformizadora da sociedade contemporânea. Sob o jugo do capitalismo hodierno, armado com o domínio da comunicação de massa, um modelo ocidental de comportamento (e mais: individualista, consumista, despolitizado etc.) é imposto. Disso não escapam sequer os japoneses do Japão, que está longe de corresponder àquele Japão que os imigrantes deixaram no começo do séc. XX. Aqui, do outro lado do mundo, a diversidade da identidade nipo-descendente pode e deve servir de bandeira de resistência. O centenário da imigração é uma oportunidade para refletir a respeito – desde que pensemos com a conseqüência e a profundidade necessárias.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 03/02/2008]