quarta-feira, 9 de abril de 2008

[NJ] O lugar da filosofia hoje

O LUGAR DA FILOSOFIA HOJE

“À consciência ingênua a filosofia aparece como o mundo subvertido, e com razão: a filosofia subverte ‘efetivamente’ o seu mundo.”
– Karel Kosik

O mundo contemporâneo exige do conhecimento de si próprio sempre mais certeza, sempre mais clareza, sempre mais definitividade. Certeza, clareza e definitividade porque este é, afinal, um mundo submetido ao econômico – e a economia capitalista é o domínio do risco calculado, portanto quer de todo o conhecimento, acima de tudo, calculabilidade. E isso mesmo diante do fato de que as relações entre os homens são tudo menos certas, claras e definitivas, quero dizer, tudo menos calculáveis.

Não é de causar espanto, portanto, que as diversas “ciências”, rendidas mais ou menos diretamente às exigências da economia, sejam todas reféns da esfera do dado, tanto mais quanto mais submetidas a cânones metodológicos restritivos e empíricos. Elas se limitam a racionalizar o que é, visam produzir conhecimentos que permitam o melhor “funcionamento” da sociedade atual e, mais ainda, deixaram-se dominar por diretivas organizacionais e metas de produtividade derivadas daquelas já aplicadas à indústria. Sob o signo sagrado do número, o inquestionável máximo para o homem moderno, a “ciência” se reduziu a mero instrumento.

Em tal contexto, a filosofia caminha na contramão. Ela não respeita a exigência de utilidade para suas conclusões e não se submete à mera verificabilidade de hipóteses como método. A filosofia é, portanto, o conhecimento que tem a seu favor a possibilidade de ultrapassar o dado. É por isso que a filosofia engendra abalos constantes no pensamento acomodado e reinante, dissolvendo a aparente solidez do lógico, do evidente, do óbvio. Duvidar de tudo – ou, mais precisamente, questionar-se a respeito de tudo – é a força motriz do pensamento filosófico.

Quem duvida da composição atômica da água? Quem duvida das leis do movimento dos corpos? Quem duvida da órbita elíptica dos planetas? Mas quem duvida da estatística que dá conta do crescimento ou retração da economia – e que ignora realidade assombrosa da exploração e da miséria? Quem duvida da universalidade do direito – sem dar conta dos enormes contingentes simplesmente excluídos do domínio da lei? Quem duvida da publicidade do Estado – mesmo quando são os interesses privados que predominam?

A física e a química, por exemplo, lograram desmistificar os fenômenos naturais, a ponto de hoje quase nada ou nada restar que não tenha uma explicação “científica” e que não possa, por uma fórmula qualquer, ser calculado com grande precisão. Quando, no entanto, se passa do âmbito do natural para o âmbito do social – no qual o efeito dos interesses em choque, das contradições, das transformações sucessivas, enfim, da história, se faz sentir com toda a força – a limitação da “ciência” ao existente se mostra, no fundo, como uma apologia do existente, ou seja, como ratificação do conjunto de relações sociais dominantes num dado momento.

Contra a atitude “científica” de iluminar a superfície do existente, a filosofia propõe investigar o que não se deixa iluminar e o que não exsurge na superfície. Isto especialmente se o pensamento filosófico não se limita a interpretar o mundo do qual faz parte, mas visa a transformação social – em outras palavras, se se trata de uma filosofia crítica. Nesse caso, ao invés da restrição ao que é, coloca-se o compromisso com o que ainda não é; ao invés da mera descrição e sistematização do que já existe, coloca-se a revelação do possível e o encaminhamento na direção do novo.

Quem anseia por certeza contribui, talvez inconscientemente, para a perpetuação do que está dado. A tranqüilidade de um espírito livre de questionamentos é paga com resignação diante de uma sociedade que continuamente nos desumaniza. Quem duvida da imutabilidade dessa estrutura social? Ora, a filosofia crítica. E com a intranqüilidade das dúvidas abre as portas para um pensamento que se recusa a capitular.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/04/2008]