sábado, 21 de março de 2009

[surtos e paranóias] "De omnibus dubitandum"

"DE OMNIBUS DUBITANDUM"

Há quem diga que nós, marxistas, duvidamos do homem. Economistas, deterministas, mecanicistas, nós, marxistas, seríamos descrentes do homem, este ser livre que, pela sua liberdade, constrói, a partir do seu espírito, todo o domínio da cultura.

Pensadores do bruto, do pesado, da materialidade que se impõe sobre a sutileza do espírito, nós, marxistas, seríamos eternos subestimadores do homem.

Ora...

Nós, marxistas, no entanto, apostamos na transformação, pelos próprios homens, do seu mundo. Apostamos na transitoriedade da realidade e na capacidade do homem de construir sua própria realidade. Difundimos entre os homens a confiança em sua própria capacidade de fazer o amanhã e o hoje melhores.

Aí, passam, aqueles que nos acusam de duvidar do homem, a acusar-nos de acreditar demais. “Utópicos.” “Messiânicos.” “Agitadores.”

Aí, dizem, aqueles que nos acusam do subestimadores do homem, que este mundo não pode ser mudado – é o único, natural, inexorável – e que os homens devem resignar-se.

Ora...

Quem é mesmo que duvida do homem?

domingo, 8 de março de 2009

[NJ] Nostalgia da ditadura?

NOSTALGIA DA DITADURA?

“(...) if all records told the same tale – then the lie passed into history and became truth.”
– George Orwell, em 1984

Em seu editorial de 17 de fevereiro último, a Folha de São Paulo, o maior jornal paulista, declarou entender que a ditadura brasileira, no período de 1964 a 1985, teria sido “branda” (teria sido uma “ditabranda”, escreveu o editor). Logo a seguir, em 19 de fevereiro, insistiu no ponto de vista, publicando, em resposta a um leitor indignado, que a ditadura brasileira, comparada às demais ditaduras instaladas nos países vizinhos no mesmo período, foi menos violenta. Contra isto reagiram, entre outros, a professora Maria Benevides, da Faculdade de Educação da USP, e o professor Fábio Konder Comparato, emérito da Faculdade de Direito da USP, cujas cartas foram publicadas no painel do leitor em 20 de fevereiro – e a Folha de São Paulo, em atitude ridícula, respondeu-lhes com a acusação de que “sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa” (sic).

Ora, se há, no caso, alguma postura obviamente cínica e mentirosa, esta certamente não é a dos professores Benevides e Comparato. É a Folha de São Paulo, esta sim, que, por sua conta e risco, pretendeu, de maneira arbitrária, lançar uma “nova versão” para a história brasileira contemporânea – “nova versão” para a qual nem sequer encontrou expressão adequada em língua portuguesa, o que lhe exigiu lançar mão do lamentável neologismo “ditabranda”. É a Folha de São Paulo, portanto, que flerta com a falsificação da história e, não obstante, reage com agressividade desmedida às críticas – justas, diga-se – que recebe.

A ditadura militar no Brasil, encaremos com franqueza, foi dura mesmo. O que, afinal, poderia atestar o contrário? A comparação com as ditaduras havidas nos países vizinhos, mais ou menos na mesma época? Seria, para dizer o mínimo, uma comparação grotesca, talvez mórbida mesmo. Uma comparação entre o que foi mais terrível, mais horrendo, mais indigno – o “melhor colocado” seria então o “menos” atroz, mas sem que isto implique, ao menos por nenhuma consideração razoável, qualquer sutileza ou qualquer mérito. A atrocidade tem então, por acaso, degraus, diferentes níveis?

No mais, com base em que tal comparação poderia ser feita? Estatísticas? Índices? Porcentagens? Mas, pensemos, que espécie de cálculo ou que espécie de números poderia dar conta do horror? E não apenas porque tais índices não são de todo confiáveis (ora, nenhuma ditadura zelou por guardar registros de suas atrocidades), mas porque se propõem a dar conta de algo que em muito lhes escapa. Violência não é exatamente algo que se “quantifica” assim. Suponhamos que a ditadura brasileira efetivamente “matou menos” – isto implica que tenha sido mais “amena” do que qualquer outra? Não é ao número total, ao índice, mas a cada uma das mães ou a cada um dos pais cujos filhos foram torturados e mortos – com os corpos jogados em valas comuns, mortes ainda hoje sem explicação, corpos ainda hoje sem identificação – que se deve perguntar, com mais justiça, sobre a dureza ou brandura da ditadura brasileira.

Errou, portanto, duplamente, a Folha de São Paulo. Errou por ofender, num ato absolutamente incompatível com próprias bases do jornalismo, dois grandes nomes do universo acadêmico brasileiro. E errou ao tentar fazer subestimar o horror da ditadura militar no Brasil. Na ânsia de discernir entre ditaduras de direita e de esquerda, de modo a apontar estas como “mais duras” e aquelas como “mais brandas” – em específico, para fazer crer que o governo de Hugo Chávez na Venezuela é “pior” do que foi a ditadura brasileira –, a Folha de São Paulo culminou por revelar a sua verdadeira face: a de meio de comunicação de massa compromissado com as classes dominantes brasileiras e, portanto, com o pensamento político mais conservador. O mesmo pensamento político que, no Brasil, parece, ainda hoje, sentir algo como uma obscura nostalgia dos “bons tempos” da ditadura...

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 08/03/2009.]