terça-feira, 9 de junho de 2009

[NJ] A perspectiva crítica do direito

[Discurso proferido por ocasião do lançamento do livro “Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista”, no dia 29 de maio de 2009, na Casa do Advogado de Dracena.]

A PERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO

O pensamento acerca do direito pode ter diferentes perspectivas. Pode ter – o que é mais comum – uma orientação direta à prática, à aplicação, à concretização do direito. E pode ter, por outro lado – e bem menos freqüentemente –, um caráter desvinculado da prática, de modo a constituir uma cogitação mais densa, mais profunda, sobre as questões fundamentais do direito.

A primeira perspectiva é a perspectiva da técnica – o que os juristas mesmos denominam usualmente “doutrina” ou “dogmática”. O pensamento jurídico dogmático tem uma evidente limitação relativa à própria atividade cotidiana do jurista – seu limite, para ser preciso, é a aplicabilidade do direito, a decidibilidade, tendo a “validade” do direito, isto é, a obrigatoriedade legítima do direito, como caráter inquestionável, dogma. Importa realizar o direito e não se permite pensar além. É a perspectiva que se encontra nos manuais, nos códigos comentados, na obra dos “grandes doutrinadores” de cada área etc.

A segunda perspectiva, desvinculada das necessidades práticas cotidianas do jurista, é aquela que podemos denominar de “Filosofia do Direito”. Esta, tal como determinada desde o séc. XIX, com a “vitória” do direito positivo sobre o direito natural, é o “lugar” de toda e qualquer reflexão sobre o direito que transborde os estreitos e bem definidos limites do pragmatismo ou do utilitarismo da atividade “profissional” do jurista. Na concepção reducionista do positivismo, ao Direito – ou, agora, à “Ciência do Direito” – importa cogitar sobre assuntos de interesse imediato à órbita do direito positivo, ou seja, o pensamento a partir da lei e para a aplicação da lei – todo o resto é relegado a um pensamento alheio à Ciência do Direito, a um pensamento não-científico, o pensamento filosófico. A Filosofia do Direito pensará, então, o que é impensável para a dogmática jurídica. Pensará o sentido, a origem, os fins, a realidade profunda das disposições jurídicas. Pensará o sentido e a razão do próprio direito.

A Filosofia do Direito, por sua vez, pode ter diferentes conotações. E tais conotações variam, é certo, de acordo com posturas políticas, de acordo com diferentes modos de encarar a realidade social em conjunto – e não apenas, portanto, o direito isoladamente. Deste modo, as conotações da Filosofia do Direito podem ser conservadoras ou transformadoras, resignadas ou indignadas, justificadoras ou críticas.

Justificadora é a filosofia do direito que aceita a conformação dada da sociedade e que aceita a legitimidade e/ou a necessidade do direito para uma tal sociedade. Justificadora, então, porque sua “missão”, em linhas muito gerais, não é senão justificar a existência e o papel social do direito. Justificadora porque não põe em dúvida a necessidade social do direito ou mesmo de um “modo” ou “modelo” específico de direito – o direito é tido como necessário e isto não se questiona, o que importa é “abrir”, pelo pensamento filosófico, as condições prévias ao pensamento científico ou dogmático sobre o direito ou “fechar” filosoficamente as questões complexas, causadoras de inconvenientes, que o pensamento jurídico estrito, por sua própria estreiteza, não dá conta de superar.

Crítica, pelo contrário, é a Filosofia do Direito que não se resigna ao dado, que não se presta ao serviço de meramente justificar o direito tal como está, que vislumbra, em maior ou menor medida, a possibilidade da transformação. Crítica porque nega o que é e cogita sobre o que pode ser. Crítica porque não se conforma ao presente, não o aceita irrefletidamente, mas põe-se a pensar sobre o futuro.

Uma tal crítica pode ser dada no conteúdo ou na forma. A crítica dada no conteúdo é aquela dirigida aos termos específicos de uma determinada disposição jurídica, ao tratamento jurídico de uma determinada questão, ao texto de uma determinada lei etc. Assim, por exemplo, o tratamento jurídico da questão do aborto pode ser, no nosso direito, considerado moralista e machista. A não-inclusão da homofobia entre as modalidades de discriminação tidas por criminosas pode ser considerada absurda. Um ou outro artigo da Constituição pode ser considerado ultrapassado. E daí por diante.

Já a crítica dada na forma, a crítica da forma jurídica, é aquela que se dirige não a conteúdos específicos, não aos termos específicos, não ao “proibido” ou “permitido” de cada disposição jurídica, mas ao direito como um todo. É a crítica que não se questiona se o direito pode ser melhor ou pior, se pode avançar aqui ou ali – é a crítica que se questiona sobre o próprio direito, qual o seu lugar, qual a sua raiz na estrutura social, para que serve, a quem serve. É a modalidade mais radical de crítica, a face mais radical da Filosofia do Direito. E é exatamente aqui que se enquadra o meu livro.

A “crítica da igualdade jurídica” que proponho é, em verdade, uma crítica ao direito como um todo, uma crítica à forma jurídica. A inspiração para tanto vem do marxismo, mais especificamente do jurista russo Evgeni Pachukanis, morto em 1937, autor daquela que é até hoje a melhor concepção marxista do direito. A partir deste referencial, a igualdade jurídica – quero dizer, a igualdade de todos perante o direito – transparece, uma vez pensada até o limite, como seu exato contrário. É a igualdade dos homens perante o direito que permite, entre estes mesmos homens, a mais profunda desigualdade social real. É como juridicamente iguais que dois homens, por um contrato, colocam-se na mais desigual das condições: um explorador, outro explorado. É como juridicamente iguais, no “éden” da circulação de mercadorias, da sociedade civil, isto é, o “éden” dos direitos humanos, que os homens realizam a brutal desigualdade da exploração, no subterrâneo invisível da produção.

O direito, assim, revela o seu autêntico papel. A forma jurídica é uma forma social característica do capitalismo, diz Pachukanis. Ora, o direito não serve senão para manter a ordem social capitalista em pleno funcionamento. É isto que a crítica da igualdade jurídica revela. A igualdade jurídica não é o contrário da desigualdade: não há igualdade dos homens perante o direito senão para a desigualdade social e econômica. Disto depende, em última análise, o funcionamento permanente de toda uma ordem social fundada na exploração do homem pelo homem.

Esta crítica, que é a posição mais à esquerda dentre todas as posições possíveis no interior da Filosofia do Direito, não tem, devo ressaltar, um caráter simplesmente negativo. Não se trata de simplesmente descartar do direito ou, melhor dizendo, de descartar a possibilidade de utilização do direito para a construção de uma sociedade mais equânime, mais justa, mais digna. Trata-se, isto sim, de manter o olhar firme na direção da transformação social. Trata-se de manter firmes as palavras de Marx: não basta interpretar o mundo, é necessário transformá-lo. Por isso a radicalidade da crítica – a crítica só pode ser radical, porque assim também deve ser a transformação social. Um mundo novo, sem exploração, sem classes sociais, sem a injustiça e a indignidade da miséria e da exclusão social, sem as mazelas da pobreza, só pode advir de uma transformação radical. Ouso pensar que esta transformação vai, inclusive, muito além do próprio direito. Ultrapassa a forma jurídica.

Que ninguém se engane. O profundo pessimismo com que minhas palavras podem ser tomadas à primeira vista é, na verdade, apenas a aparência falsa da mais profunda esperança. A esperança inquebrantável de outro futuro possível. A esperança inquebrantável de um mundo pleno de justiça e dignidade. É esta esperança que, através deste livro e de tudo mais que eu venha a dizer, eu gostaria de ver semeada em cada um dos senhores e em cada uma das senhoras.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 07/06/2009.]