terça-feira, 29 de setembro de 2009

[Crítica Social Pobreza e discriminação - moralismo

POBREZA E DISCRIMINAÇÃO – MORALISMO

Uma tradicional visão moralista concebe a pobreza como resultado de uma falha individual de caráter. Seria o desapego do pobre ao trabalho, o seu desleixo, a sua indisciplina etc. que o levariam a ser pobre. A pobreza seria, portanto, deste ponto de vista, “culpa” do próprio pobre que, pouco disposto ao esforço e ao sacrifício pessoal, restaria nesta condição por falta de dedicação ou de empenho suficientes para ascender socialmente.

Mas será mesmo que alguém, por pura preguiça, toleraria permanecer numa situação de falta recursos sequer para o essencial para a sua família? Será mesmo que alguém, por pura falta de empenho, toleraria passar fome, não ter um teto, não ter nada? Nada poderia ser mais absurdo. Vê-se, de pronto, que se trata de um entendimento absolutamente vazio, infundado, baseado tão-somente em preconceito. Reducionista e, por isso, equivocada desde o princípio, esta visão moralista apenas contribui para a perpetuação da discriminação que atinge os mais pobres – discriminação que, de maneira perversa, agrava ainda mais a condição de quem vive na pobreza.

Ora, basta analisar um pouco mais a fundo. A sociedade mercantil capitalista é, na sua essência, erigida sobre uma desigualdade econômica estrutural entre uma massa de despossuídos e uma ínfima parcela de possuidores. A existência dos despossuídos e, mais do que isso, a sua existência em número muito superior ao número de possuidores, não é acidental. Só assim pode funcionar o ciclo do próprio capital, porque este ciclo só pode funcionar a partir da exploração daqueles que nada possuem exceto a sua própria força de trabalho.

Fica claro, então, que a transposição da questão da pobreza para um nível individual é, no fim das contas, uma maneira veemente de recusar observar a própria dinâmica da sociedade. É uma forma de atribuir ao indivíduo algo que em muito o ultrapassa: não basta “querer” acender socialmente se a própria raiz desta sociedade simplesmente bloqueia esta opção. A pobreza está calcada no núcleo estrutural da sociedade presente. A sociedade capitalista, na verdade, não pode eliminar a pobreza – a eliminação completa da pobreza exigiria a eliminação do próprio capitalismo.

O moralismo que discrimina a pobreza é o exato ponto de vista da classe dominante que, exatamente por ser dominante, não pode conceber – isto é, admitir – a responsabilidade do próprio domínio na gênese da pobreza. Algo parecido com aquilo que recebe, na psicologia, o nome de projeção. Manobra típica daqueles que, no fundo, estão em situação de sentir alguma “culpa” e, por isso mesmo, atribuem-na, para não ser preciso enfrentá-la, para o outro – para a própria “vítima”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 27/09/2009.]

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

[Crítica Social] H1N1 e terror

H1N1 E TERROR

A pandemia da gripe A (H1N1), outrora “gripe suína”, tornou-se uma epidemia do terror. Desde que instalado o surto de contaminação pelo novo vírus, a grande mídia parece não querer mudar de assunto, números de vítimas são divulgados a cada segundo, “dicas” de prevenção são veiculadas incessantemente etc. O resultado disso é uma atmosfera de obsessão coletiva que tomou conta da ordem do dia. Dos jornais que fizeram dos “informes” sobre a gripe A um espaço permanente de suas grades à onipresença do álcool-gel para a desinfecção das mãos, estão dadas as demonstrações de um estado de pânico social.

Não pretendo com isso dar a entender que a gripe A não deve ser levada a sério. Deve, não há dúvida. Como toda gripe, esta se espalha rapidamente e pode – como de fato tem ocorrido – levar a óbito. Assim, todos os cuidados possíveis com a prevenção e, nos casos de contaminação, toda a atenção possível ao tratamento são o mínimo – isto não pode faltar, quer por parte dos indivíduos, quer por parte das autoridades públicas.

Minha censura se dirige especificamente ao clima de pânico construído em torno da gripe A. O noticiamento exaustivo, a superexposição midiática, a preocupação governamental em demonstrar providências tomadas – nada disso é, no fim das contas, acidental. Quais os reais motivos para tanto barulho por conta da nova gripe? O que resta por detrás de tanto alarde?

Observemos com cuidado. Segundo dados oficiais divulgados pelo Ministério da Saúde no dia 2 último, foram, ao todo, até o final de agosto, 6592 casos confirmados e 657 mortes. Os números não são, é certo, insignificantes. Mas também os dados do Ministério da Saúde apontam, por exemplo, 4823 mortes por tuberculose em 2006. No mesmo ano, 2236 mortes, entre crianças de até 5 anos, por diarréia. 2798 mortes por acidentes de trabalho em 2006 e 2804 em 2007.

Ora, essas mortes, contabilizadas aos milhares, estranhamente não são noticiadas. Doenças perfeitamente curáveis matam, no Brasil, ano após ano, em volume avassalador e nem a grande mídia nem o poder público demonstram extraordinária preocupação a respeito. O trabalho continua a matar tantos e tantos trabalhadores, em geral pelo puro desleixo quanto às condições mínimas de segurança, sem que nenhuma mobilização social a respeito seja levantada.

O ostensivamente visível recobre o invisível – o que deve permanecer invisível – da sociedade. Nisto também se enquadra a situação atual da gripe A. O que se impõe, neste momento, é questionar: por quê?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 23/09/2009.]

terça-feira, 15 de setembro de 2009

[Crítica Social] Filosofia? Direitos humanos?

FILOSOFIA? DIREITOS HUMANOS?

Segundo dados divulgados na semana passada pela Ordem dos Advogados do Brasil, o índice de aprovação no último exame nacional de ordem, requisito para que bacharéis em direito exerçam a advocacia, foi particularmente ruim para o estado de São Paulo. Pela primeira vez os egressos dos cursos de direito paulistas participaram de um exame nacional, e não local e específico, de modo a permitir a comparação com outros estados – e São Paulo obteve a segunda pior colocação, com apenas 15,6% de aprovação.

São Paulo é, não por acaso, o estado brasileiro em que a proliferação desordenada e mercantilizada de cursos superiores se apresenta mais claramente. É também o estado em que os cursos de direito são marcados por um caráter acentuadamente técnico, não raro orientados de modo explícito para preparar os estudantes exatamente para o exame de ordem. Estes fatores devem ter alguma influência sobre o desempenho pífio apresentado.

Talvez baste, para entender melhor a questão, olhar para o extremo oposto da tabela. Dentre todos os cursos do Brasil, o que obteve melhor desempenho foi o da Universidade de Brasília, com 97,2% de aprovação. E a própria UnB declara que seu sucesso é devido “a um processo seletivo eficiente, à ênfase nas disciplinas humanistas e ao incentivo ao protagonismo do estudante” (Estado de S. Paulo, 03.09.2009). Ora, algo disso não está seriamente em falta nos cursos de direito paulistas?

Há quem pense que “essas coisas de filosofia e direitos humanos” são, nos cursos de direito, perda de tempo. Pensam que tudo que importa é formar juristas “práticos” – “técnicos” do direito, não “filósofos”, não “críticos”, não “teóricos”. Nos cursos de direito tecnocráticos e voltados exclusivamente ao mercado, este é exatamente o pensamento dominante. Ignoram, porém, algo essencial: a teoria sem prática pode ser ruim, mas a prática sem teoria pode ser ainda pior.

A prática do direito sem teoria, alheia à teoria, é, afinal, nada mais do que repetição cega e confirmação irrefletida desta realidade social cheia de mazelas que o direito só faz confirmar – ainda mais quando aplicado automaticamente, acriticamente, à maneira do tecnicismo reinante. A orientação imediata à prática tende a produzir este deletério efeito: faz com que os estudantes saiam dos cursos de direito sem saber o que exatamente é o direito e para que serve.

Paradoxal é que para quem pensa que tudo se resume à prática e à técnica, enfim, à completa insensibilidade crítica, o que costuma importar mais é exatamente o resultado da OAB. “Filosofia? Direitos humanos? Isto não enche barriga e não cai na OAB!” – é algo freqüente de se ouvir de estudantes de direito e mesmo de professores. Pois bem. Os resultados mostram que estão errados.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 13/09/2009.]

terça-feira, 8 de setembro de 2009

[Crítica Social] A força dos estudantes

A FORÇA DOS ESTUDANTES

Muitas das grandes forças sociais transformadoras, talvez a quase totalidade delas, simplesmente desconhecem os reais limites de suas potencialidades. Exemplo bastante claro disso é dado nos dias de hoje, sem dúvida, pelos estudantes. O outrora ativo e combativo movimento estudantil parece agora desorganizado e dormente, silente mesmo diante de situações críticas.

Isto pode ser explicado, penso, por dois principais fatores. Em primeiro lugar, porque a geração contemporânea de estudantes é dos anos 90, uma geração pós-queda do Muro de Berlim, para a qual a democracia formal parece “natural” e para a qual a política está “morta”. Em segundo lugar, porque o desemprego estrutural e a concorrência cada vez mais acirrada por “postos de trabalho” conduzem o estudante a ver no sistema de educação apenas uma qualificação adicional que o favorecerá no mercado, um “trampolim” para um emprego melhor.

Como se nada mais importasse, a realidade contemporânea constrange o estudante a pensar: Para que política, se tudo que importa é salvar a minha própria pele? Para que engajamento, se nada vai mudar no mundo? Para que luta conjunta, se os outros estudantes são meus “concorrentes”? E assim o estudante não apenas não vê motivo para lutar, mas também não se sente capaz de fazê-lo – a sociedade o constrange a pensar que movimento estudantil é sinônimo de “baderna” e que estudante só tem mesmo é que estudar (i.e. decorar informações).

Hoje, contudo, parece necessário que os movimentos estudantis despertem novamente. O agravamento das desigualdades sociais, os desvios cada vez mais sérios da política partidária, o empobrecimento cultural que avança na mesma espantosa velocidade do desenvolvimento dos meios de comunicação – tudo isso clama por posicionamento dos estudantes.

Em especial, a situação cada vez mais alarmante da mercadorização do ensino exige cada dia mais vigorosamente a resistência daqueles que são os maiores interessados. Notadamente no ensino superior, em que faculdades caminham para se tornar cada vez mais escancaradamente fábricas de diplomas, uma tal resistência se mostra urgente.

Lutar contra um ensino cada vez mais vazio, cada vez mais tecnocrático, cada vez mais voltado para a satisfação dos interesses do mercado e cada vez menos para a compreensão da realidade – por um ensino crítico, autenticamente formador e emancipador.

Lutar, mais ainda, por uma sociedade diferente. Recusar resignar-se ao presente, pois o presente não é imutável – nada é imutável. O poder para tanto reside nas mãos dos estudantes – é por estas mãos, afinal, que será construído o futuro.

Enfim: estudantes, eis o seu momento.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 06/09/2009.]

terça-feira, 1 de setembro de 2009

[Crítica Social] Realidade social e pensamento crítico

REALIDADE SOCIAL E PENSAMENTO CRÍTICO
(...) toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente.
– Karl Marx
As questões sociais são, de um modo geral, encaradas de uma maneira acrítica, superficial ou mesmo preconceituosa. Não é raro ouvir ou ler, por exemplo, que existe pobreza porque “pobre não gosta de trabalhar”, que os sem-terra ou os sem-teto são “baderneiros que querem tomar a propriedade alheia” ou que a pouco significativa expressão “o brasileiro não tem cultura” explica grande parte das mazelas de nossa realidade social. Tudo isto é insuficiente e equivocado: é muito mais uma maneira de desconhecer ou de negligenciar as questões sociais e, portanto, não é compatível sequer com uma proposta séria de pensar a realidade.

É claro que as questões sociais não são questões aritméticas e, por não serem exatas, comportam análises, interpretações e visões as mais diversas. E nenhuma dessas visões pode ingenuamente clamar exclusividade ou supremacia sobre todas as demais, já que é a complexidade do próprio todo social que enseja essa multiplicidade de entendimentos. Mas é exatamente esta complexidade que põe de imediato todo entendimento abusivamente simplificador do social em irremediável descompasso com a realidade.

As visões baseadas tão-somente em moralismo, estereótipos e lugares comuns exemplificam perfeitamente um tal descompasso. São visões que nada revelam, nada explicam, apenas fazem perpetuar a alienação e, portanto, não contribuem nem para a precisão dos conhecimentos sociais nem para alteração da sociedade presente. Uma perspectiva de pensamento que se pretenda séria precisa ir além. Uma perspectiva que, mais ainda, não se resigna perante a opressão, a exploração e a indignidade da miséria e da indigência precisa ir mais longe ainda. Uma perspectiva crítica da sociedade, quero dizer, uma perspectiva que busca não apenas o conhecimento teórico e distante, mas também a transformação efetiva da realidade, precisa enfrentar as questões sociais pelas raízes, precisa buscar nas profundezas da estrutura última da sociedade as explicações para os acontecimentos sociais do dia-a-dia.

A crítica social a que pretendo dedicar esta coluna terá por fundamento esta última perspectiva. O objetivo é singelo, nada além de parar para pensar. Pensar radicalmente. Ousar questionar. Questionar eventualmente o inquestionável. Questionar e conhecer sem resignar. Conhecer para transformar. Eis as chaves para o que virá daqui por diante.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/08/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 30/08/2009.]