quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

[Crítica Social] Sobre a agressão no metrô de São Paulo

SOBRE A AGRESSÃO NO METRÔ DE SÃO PAULO

Ao longo dos últimos dias, foi destaque nos telejornais um vídeo, gravado via celular, em que, dentro de um vagão do metrô de São Paulo, duas mulheres se agridem por conta de um assento preferencial indevidamente ocupado. O vídeo é, de fato, chocante – menos, porém, do que a grande mídia parece pretender. Qualquer usuário regular do sistema de transporte público da capital paulista – ou seja, a maior parte da sua população de mais de 11 milhões de habitantes, sobretudo aqueles que pertencem às classes menos favorecidas – não terá um grande espanto, pois sabe que este tipo de acontecimento não é incomum.

É compreensível, pensando por este mesmo ponto de vista, que os senhores e senhoras que decidem a pauta dos grandes noticiários, que determinam o que será notícia e o que será destaque, desconheçam o sistema de transporte público. Desconhecem, afinal, um sistema de transporte que simplesmente não utilizam. Tanto assim que, até agora, as especulações sobre os motivos da agressão têm se restringido a superficiais, quando não patéticos, discursos sobre a falta de cordialidade ou de “educação”, a falta “espírito cristão” ou mesmo o “estresse” excessivo causado pelo ritmo frenético das compras de final de ano.

Isto tudo talvez fizesse sentido para uma briga eventualmente flagrada num metrô da Suécia ou de algum outro país com alto índice de desenvolvimento humano. E faria sentido num lugar desses porque muito provavelmente os usuários do transporte público não estariam abarrotados num vagão superlotado, não teriam esperado demasiadamente por um transporte que não é nem barato nem eficiente, não teriam que se deslocar por horas todos os dias, duas vezes por dia pelo menos, entre a residência nos limites da periferia e o local de trabalho no centro. Seria, então, de se perguntar se a briga eventualmente flagrada teria sido motivada por qualquer fator meramente subjetivo, pessoal, idiossincrático. Mas por trás da briga no metrô de São Paulo há inúmeras questões objetivas que a TV, por seus próprios interesses, simplesmente não cogita.

A lógica do transporte público nas grandes cidades brasileiras é, na verdade, a mesma do transporte bovino. Tudo que importa é carregar o maior número possível de passageiros dentro do menor espaço, com o menor custo operacional possível. Conforto, tempo de viagem despendido, nada disso é minimamente relevante do ponto de vista de quem administra o sistema. Tudo que importa é permitir que a mão-de-obra chegue até o local de trabalho – como o gado até o abatedouro. A única diferença é que o gado humano ainda retorna, ainda faz a viagem de volta para casa, para um descanso mínimo, não mais do que suficiente para agüentar-se de pé no dia seguinte – porque, afinal, o abate do gado humano é lento, gradual, é feito dia após dia, por anos a fio.

Que, numa tal situação de desgaste físico e mental, numa tal situação de indignidade, as pessoas às vezes, por qualquer bobagem, percam a cabeça é o mínimo que se pode esperar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/12/2010.]

sábado, 25 de dezembro de 2010

[Crítica Social] Espírito do Natal


[Will Leite. Willtirando. Fonte: www.willtirando.com.br]

ESPÍRITO DO NATAL

Os últimos dias de cada ano são – ou deveriam ser, segundo certos interesses – sempre tomados por aquilo que se chama comumente de “espírito do Natal”. A decoração exageradamente colorida e exageradamente luminosa de casas e ruas, as reuniões com amigos e familiares, o cardápio típico dessas festas, os presentes, as compras. Tudo parece meticulosamente planejado para criar uma certa circunstância, um certo “clima” em função do qual o “ânimo” das pessoas deveria igualmente transformar-se.


Mas o que é – ou, pelo menos, tem sido – este “clima” senão uma espécie de catarse, uma espécie de furor coletivo inteiramente dedicado ao mais puro consumismo? O que é este “ânimo” modificado pela circunstância das festividades natalinas senão a tendência a uma completa supressão de qualquer controle na ânsia de consumir, uma suposta “justificativa” para consumir a vontade?

Comprar – eis do que se trata o Natal e o seu “espírito”. A pequena alegria de presentear o próximo, a satisfação por reunir-se com pessoas queridas (ou nem tanto), mesmo as questões religiosas, tudo não passa de cenário para uma outra satisfação, uma outra “religião”: o consumo. Não há nada além. O que há de especial na época do Natal, a exaltação da família – ou melhor, de um velho ideal de família – e da moralidade cristã, tudo isso não vai além do imaginário. Um imaginário, porém, muito convenientemente construído para atender aos interesses de quem, no fim das contas, lucra com a febre do consumo.

O Natal, que ninguém se engane, é uma celebração do capital. O seu “espírito”, portanto, não pode ser outro senão o espírito da mercadoria – ainda que a mercadoria seja a completa ausência de qualquer espírito.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 22/12/2010.]

domingo, 19 de dezembro de 2010

[Crítica Social] 24 contra 190

24 CONTRA 190

A Receita Federal anunciou nos últimos dias que espera receber, no início do ano que vem, cerca de 24 milhões de declarações de Imposto de Renda. O número, claro, parece bastante expressivo à primeira vista. Mas isto muda completamente de figura se pensarmos que, segundo dados oficiais do censo mais recente, a população brasileira é superior a 190 milhões de pessoas. Fazendo um cálculo simples, não se espera que mais do que 12% da população brasileira faça a declaração de Imposto de Renda.

Se levarmos em consideração que deverá declarar o imposto quem obtiver ao longo de 2010 rendimentos pouco superiores a 22 mil reais – ou seja, um rendimento mensal de cerca de 1800 reais –, resta claro que não se espera que mais do que 12% da população brasileira tenha um tal nível de renda. Um salário de 1800 reais não é, por certo, insignificante, mas também não parece tão exorbitante a ponto de ser acessível apenas uma ínfima parcela de pouco mais do que um décimo da população. Mais, não parece tão exorbitante se considerarmos que, segundo as estimativas do DIEESE, o salário mínimo, para atender a todas as necessidades para as quais deveria ser suficiente (moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social para o trabalhador e sua família, segundo o art. 7º da Constituição Federal), deveria ser algo em torno de 2000 reais.

Traduzindo, em termos os mais simples imagináveis, tudo o que se espera é que a esmagadora maioria da população brasileira não tenha acesso, pelo menos não de maneira legalizada, aos rendimentos suficientes sequer para o mínimo vital. Os números, é evidente, podem ser imprecisos. Os cálculos, os dados, as estatísticas, por si sós, não significam mesmo nada. Mas o que se aponta aqui é uma realidade fundamental e inegável: a assombrosa desigualdade da sociedade brasileira, a assombrosa polarização que faz com que aqueles que dispõem dos rendimentos mínimos suficientes pertençam a uma minoria de privilegiados.

Quanto, pergunto-me, esta realidade é mascarada? Quanto a percepção desta desigualdade é obstruída? Pois é certo que ninguém gosta de declarar – e, muito menos ainda, de pagar – o Imposto de Renda: mas será que esses 24 milhões de contribuintes, esses 12% da população brasileira, têm exata consciência da sua condição? Será que a imensa maioria da população que está “abaixo” da faixa do Imposto de Renda tem consciência da sua própria força e de quanto, pela sua ação política, poderia transformar esta realidade? Que isto assim prossiga é um absurdo. Que a imensa massa dos explorados consinta indefinidamente com uma tal submissão é algo que não se pode aceitar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/12/2010.]

domingo, 12 de dezembro de 2010

[Crítica Social] Automóvel e capitalismo

AUTOMÓVEL E CAPITALISMO

As grandes cidades brasileiras sofrem com os excessos do trânsito. O transporte público é quase invariavelmente ineficaz e deficiente. São Paulo, a maior cidade do país, tem um trânsito cada vez mais caótico e um sistema de transporte público que – a despeito da tão propagandeada expansão do metrô – é repleto de problemas. Os seus congestionamentos imensos e diários são a prova da irracionalidade cabal do excesso de automóveis que entopem as suas ruas e avenidas.

O problema, claro, é complexo, envolve mesmo a estruturação das grandes cidades, cujo crescimento têm sido pautado quase exclusivamente pelo acesso via automóvel privado. Envolve ainda questões ambientais e de saúde pública, uma vez que os veículos são prodigiosas fontes de gases poluentes, causadores de uma série de doenças. A solução imediata, no entanto, parece bastante evidente e simples: ampliar a utilização do transporte público em detrimento do automóvel privado, isto é, desenvolver os meios coletivos de deslocamento em lugar dos meios individuais.

Ora, é evidente que um veículo que transporta 40 ou mais passageiros de uma só vez, por exemplo um ônibus urbano, é mais racional do que um veículo que transporta um só indivíduo. O mesmo para os sistemas ferroviários de transporte, como trens e metrô, que podem transportar centenas de modo rápido. Por que, então, estas alternativas não conseguem suplantar o domínio do automóvel? Por que os carros, em geral transportando apenas o seu motorista, continuam reinando sem questionamento nas ruas?

É preciso considerar, antes de tudo, o aspecto econômico. Sob este aspecto, o investimento no transporte coletivo não apenas não ganha terreno – na verdade, tem perdido. Dados divulgados nos últimos dias dão conta de que a produção de automóveis no Brasil cresceu 14,6% entre janeiro e novembro de 2010, em comparação com o mesmo período de 2009. Foram produzidos, até novembro deste ano, cerca de 3.360.000 automóveis, contra os cerca de 3.183.000 produzidos ao longo de todo o ano de 2009.

Há, portanto, um ramo inteiro da produção industrial, e um ramo em crescimento, que lucra com os excessos do trânsito e da poluição. E para a própria indústria automobilística pouco importa que suas mercadorias entravem as ruas – importa apenas que alguém as compre. É este interesse, no fim das contas, que prevalece. É a multiplicação do capital que realmente importa, é a multiplicação do capital que limita antes de tudo quaisquer possibilidades de transformação – no transporte ou no que quer que seja –, não a racionalidade, não a saúde pública, não o bem-estar da população.

Assim, a despeito da obviedade da solução, é preciso ter consciência de que o caos do trânsito continuará. É preciso ter consciência de que os problemas ambientais e de saúde decorrentes não serão reduzidos. Isto é, afinal, o capitalismo...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 08/12/2010.]

domingo, 5 de dezembro de 2010

[Crítica Social] O bem contra o mal

O BEM CONTRA O MAL

Rio de Janeiro em guerra. Soldados com fuzis por todos os lados. Blindados subindo o morro. Helicópteros em vôo rasante. É assim que a TV, ao vivo e ininterruptamente, vende um espetáculo de violência rigorosamente planejado que tomou por palco algumas das áreas mais marginalizadas de uma das maiores cidades do Brasil. E, mais ainda, a TV vende o espetáculo com os personagens já muito bem traçados: trata-se, dizem-nos, de uma luta do bem contra o mal.

O inimigo é o tráfico de drogas, o crime organizado, os “bandidos”. A TV parece regozijar-se ao mostrá-los fugindo, derrotados, sendo baleados enquanto correm. É a derrocada do mal – e então o telejornal incansavelmente mostra os depoimentos da população local, os “cidadãos de bem” que “por acaso” também habitam as comunidades invadidas, demonstrando o seu enorme contentamento com a ação militar. O triunfo do bem, afinal, há de ser comemorado.

Mas o que há para comemorar? Quem, na realidade, ganha com a vitória do BOPE, da “Tropa de Elite”? Ora, o que visão moralizante, simplificadora e sensacionalista da grande mídia ignora – e faz ignorar – por completo são as causas. Ao apresentar o traficante como o lado “mau” e, ao contrário, as “forças da ordem” como o lado “bom”, as questões mais importantes são apagadas: Por que o traficante é traficante? E por que as “forças da ordem”, depois de tanto tempo de conivência, têm agora que invadir e esmagar o tráfico de drogas?

Ninguém se torna traficante simplesmente porque é “mau”. Uma inclinação moral subjetiva não poderia explicar um fenômeno tão complexo e extenso, sobretudo na realidade do Rio de Janeiro. A explicação só pode ser dada em função de uma completa falta de perspectivas imposta por uma absurda condição de exclusão social. Se, portanto, o tráfico é um “problema”, a sua solução de modo algum pode a eliminação física do traficante. Pois a morte ou prisão dos traficantes, a sua expulsão do morro, enfim, isto que a TV vende como um “triunfo militar” em nada contribui para o fim do tráfico. As condições sociais que empurram jovens para o tráfico – a enorme desigualdade social, a discriminação, a criminalização da pobreza etc. – continuam intactas.

Então a vitória certamente não é das comunidades invadidas, porque a sua condição marginalizada continuará a mesma, a discriminação social de que são vítima seus moradores não será reduzida. Certamente não é da sociedade brasileira como um todo, porque a sua desigualdade espantosa não será minimamente reduzida sob a ação dos fuzis da polícia. A vitória é de alguns poucos interesses poderosos que, neste momento, desejam “ordem”. E só.

No fim, com a batalha ganha, policiais hastearam as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro no alto do morro. A cena, é claro, lembra a famosíssima fotografia da bandeira dos EUA sendo hasteada no topo do Monte Suribachi, após a vitória norte-americana em Iwo Jima, durante a II Guerra Mundial. Os dois eventos, porém, têm algo mais em comum: foram ambos fraudes.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/12/2010.]

domingo, 28 de novembro de 2010

[Crítica Social] Automóvel, pobreza, discriminação

AUTOMÓVEL, POBREZA, DISCRIMINAÇÃO

Circulou como uma mania na internet na última semana um vídeo no qual o jornalista Luiz Carlos Prates, comentarista de uma emissora de TV de Santa Catarina, alega, entre outras coisas, que o alto índice de acidentes nas estradas brasileiras e outros problemas relacionados ao trânsito são devidos à “popularização do automóvel”. Crê o jornalista que os consumidores de baixa renda, aqueles que, em suas palavras, “nunca leram um livro”, são responsáveis, uma vez que agora têm acesso ao automóvel, pela insegurança no trânsito – e que, portanto, a ascensão social e a melhoria da qualidade de vida deste grupo social são “espúrias”.

O vídeo, claro, é um verdadeiro deleite para os reacionários de plantão, sempre mais numerosos do que racionalmente se pode supor. Por outro lado, para qualquer visão política minimamente engajada socialmente e consequente na análise da realidade brasileira, as declarações do jornalista só podem ser reputadas como absurdas. Pois aquilo que, no fim das contas, tais declarações alimentam não é senão a discriminação social, a discriminação de classe, uma certa visão elitista e esnobe recorrente em meio às classes dominantes brasileiras.

Ora, por que o motorista pobre – que apenas muito arbitrariamente pode ser dito “inculto” – seria responsável em maior medida pelas desventuras do trânsito do que o motorista de outra classe social? Qual relação pode ser estabelecida, com um mínimo de razoabilidade, entre violência no trânsito e condição social? Desde que haja disposição para pensar para além de preconceitos rasteiros, a resposta parece evidente: não há relação alguma, não há elemento algum que autorize uma ligação razoável entre a pobreza e a “culpa” por aquilo que se passa em nossas estradas.

A pergunta que se deve fazer é, então, uma outra: por que, mesmo diante da completa ausência de argumentos razoáveis, alguém pretende atribuir ao pobre uma tal responsabilidade? Qual o motivo para tanto? Ao que parece, o incômodo aqui não é tanto com o trânsito. O incômodo, no fundo, parece ser a constatação, por parte das elites, de que a propriedade do automóvel já não pode funcionar perfeitamente como elemento de distinção social. Se tanto o pobre quanto o rico podem ter um carro, então o carro já não serve ao rico como prova de seu distanciamento – ou da sua suposta “superioridade” – quanto ao pobre. E se, então, há problemas no trânsito, essa visão esnobe – e limitadíssima – de mundo não pode senão apontar o dedo para o outro e imaginar que nada disso ocorreria se esta “gente” estivesse ainda “condenada” ao transporte público.

Como análise dos problemas do trânsito, os argumentos apresentados no vídeo não fazem o menor sentido. Mas fazem sentido, pensando bem, como protesto contra o esfumaçamento de velhos “degraus” sociais dos quais nossas velhas elites tanto se comprazem. Com isto, evidentemente, uma visão socialmente crítica não pode em nenhuma hipótese concordar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/11/2010.]

domingo, 21 de novembro de 2010

[Crítica Social] Homofobia e religião

HOMOFOBIA E RELIGIÃO

As declarações das autoridades maiores da Igreja Católica não raro surpreendem. A condenação da homossexualidade como “pecado”, a proibição do uso do preservativo mesmo diante do avanço das doenças sexualmente transmissíveis, a insistência no celibato mesmo diante de constantes “escândalos” sexuais do clero – tudo isso parece bem pouco e cada vez menos razoável. No fundo, tais posições talvez sejam explicáveis como recrudescimento desesperado diante da perda contínua de adeptos, talvez como gritos de agonia de uma visão de mundo em vias de desaparecer num mundo em que a circulação cada vez mais frenética de informações ameaça a persistência de qualquer dogma. Mas explicá-las definitivamente não é o que importa aqui...

Foi notícia [v., por exemplo, FSP e Terra] nos últimos dias a declaração de Bento XVI a bispos brasileiros na qual o papa conclamou-os à defesa do “matrimônio entre homem e mulher” e da vida “desde o momento da concepção até a morte natural” [discurso na íntegra: aqui]. Leia-se: contra a união entre pessoas do mesmo sexo e contra o aborto. Isto, claro, não é uma novidade. Há poucas semanas, o mesmo Bento XVI, em clara tentativa de interferir no processo eleitoral brasileiro, discursou em termos semelhantes a outros bispos brasileiros. E são freqüentes mesmo as suas declarações nesse sentido – isto quando não são ainda mais abertamente conservadoras.

O que mais surpreende, porém, é que, quase ao mesmo tempo em que a declaração de Bento XVI é noticiada, a grande mídia destaca a agressão sofrida por um grupo de jovens em São Paulo, em plena Av. Paulista. A suspeita maior, até o momento, é de que a agressão tenha sido motivada por homofobia. E isto, por sua vez, também não é novidade entre nós. Embora as estatísticas não sejam claras, é certo que o Brasil é um dos países com maior índice de violência contra homossexuais no mundo. Na região da Av. Paulista, em específico, agressões semelhantes são recorrentes.

Esta coincidência entre as notícias não apontará, se pensarmos bem, para uma outra “coincidência”? Quero dizer, esta persistência da homofobia, e em níveis tão alarmantes que desencadeiam uma violência sistemática, não terá alguma relação com preconceitos alimentados exatamente por uma visão religiosa de mundo?

Ora, a Igreja e os fiéis poderão certamente argumentar que a religião não propaga, mas condena toda e qualquer forma de violência. E isto é certo. Mas parece certo também que a insistência da Igreja na condenação da homossexualidade, a sua taxação incessante como “imoralidade” ou “pecado” a ser combatido, não contribui em absolutamente nada para o arrefecimento da homofobia. Pelo contrário, alimenta-a na medida em que fornece, direta ou indiretamente, fundamentos para uma visão segregacionista, discriminatória, preconceituosa. Que esta visão, logo adiante, torne-se violência aberta é algo bastante previsível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 17/11/2010.]

domingo, 14 de novembro de 2010

[Crítica Social] Sobre a pobreza e o seu desconhecimento

SOBRE A POBREZA E O SEU DESCONHECIMENTO

Será que o leitor paulistano tem idéia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200?” A pergunta é parte de um texto de Maria Rita Kehl, publicado ainda durante a campanha eleitoral presidencial no Estado de São Paulo – texto que, diga-se, custou a demissão da autora do cargo de colunista daquele periódico abertamente conservador. Os 200 reais em questão dizem respeito ao programa Bolsa-Família.

Pois bem, insisto: será que o brasileiro de classe média, especialmente do sudeste e do sul do país, tem idéia do que significa ser miserável? Será que, da sua posição social, ele consegue compreender o que é a pobreza e a sua real dimensão na sociedade brasileira?

Para quem nunca sofreu com a carência das coisas mais elementares, talvez nunca tenha surgido a oportunidade de compreender que mesmo o mínimo essencial – o alimento, a água, a vestimenta, o teto, o transporte, a higiene etc. – só podem ser obtidos com dinheiro. E quem não é proprietário – de terras, máquinas, estabelecimentos comerciais etc. – não tem outra maneira de obter dinheiro (e, portanto, tudo mais que é indispensável à sua sobrevivência) senão vendendo o próprio trabalho. O que acontece, então, com aqueles que, no “mercado de trabalho”, não conseguem vender o próprio trabalho ou só conseguem vendê-lo em condições marginais, como uma “mercadoria de segunda”? Ora, o que acontece é a pura e simples incapacidade de custear mesmo as suas próprias condições elementares de subsistência.

A classe média costuma atribuir esta condição “desfavorecida” a causas morais: é porque alguns indivíduos não têm “vontade”, não “se esforçam”, não “lutam” que vivem na pobreza. Mas mesmo que todos queiram e se esforcem, há oportunidades para todos? A formação econômica em que vivemos oferece esta possibilidade? Na verdade, não. Não há “lugar ao sol” para todos. A condição indispensável para a riqueza ou, pelo menos, a boa vida de alguns é a miséria de muitos – esta desigualdade é estruturalmente necessária na sociedade presente.

Não é minimamente razoável, portanto, atribuir ao próprio pobre a responsabilidade pela sua pobreza. Não é minimamente razoável imaginar que a pobreza é algo de “natural”, deste modo, irremediável. Há, sem dúvida, um profundo desejo da classe média e dos grupos privilegiados em geral de ignorar a situação penosa de quem é miserável e, em especial, a dimensão social da miséria no Brasil. A auto-ilusão, porém, não pode sobreviver por mais de dois minutos diante da dura realidade social em que – querendo ou não – vivemos. A perpetuação de níveis absurdos de pobreza é uma chaga profunda da sociedade brasileira. Nossa desigualdade social está entre as maiores do mundo. Enfrentar isso é inquestionavelmente uma missão urgente.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/11/2010.]

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

[Crítica Social] Com ou sem esclarecimento

COM OU SEM ESCLARECIMENTO

Na disputa eleitoral do próximo domingo, não está em jogo nenhuma grande alternativa. Estão em disputa duas posturas políticas favoráveis ao grande capital, que concorrem mais propriamente por uma divergência de “modo” do que de alinhamento. As duas posições representam, no fim das contas, posições divergentes dentro das classes mais favorecidas.

De um lado, o que resta de velhas aristocracias decadentes, de elites tradicionais e tradicionalistas, de uma parcela retrógrada da classe média cuja aspiração maior continua a ser tornar-se elite (mas ainda representada como a “velha elite”). Em comum, tais grupos carregam velhos preconceitos, uma certa aversão ao “povo” (representado como a mera massa da população menos favorecida) e a quaisquer formas de poder popular, uma profunda rejeição a quaisquer medidas de distribuição de renda (mesmo as mais superficiais). Em suma, tais grupos são profundamente contrários a qualquer alteração, mesmo que pequena e conjuntural, da estrutura de classe profundamente desigual de marca a sociedade brasileira. Sentem-se ressentidos pelos últimos 8 anos, nos quais o país foi governado por um ex-operário, o que lhes parece inadmissível. Apelam, agora, ao discurso da “limpeza”, da “ética”, da “verdade”, enfim, a um discurso “moralizador” – e isto porque consideram qualquer movimento do poder público para além do pequeno “clube” dos poderosos algo “imoral”.

Do outro lado, elites mais dinâmicas e uma nova classe média, grupos dominantes igualmente ligados ao capital porém despidos de uma anacrônica nostalgia de tempos senhoriais. São os grupos dominantes, por assim dizer, “esclarecidos”, capazes de compreender que mudanças sociais não são necessariamente contrárias ao domínio do capital e dos capitalistas. Por isso mesmo, tais grupos são favoráveis a medidas de distribuição de renda e mesmo a alterações superficiais na estrutura de classes, porque são capazes de compreender que distribuir renda não é simplesmente “dar dinheiro para pobre” – é, na verdade, uma forma de favorecer o consumo e, portanto, de favorecer a realização do capital, ou seja, uma maneira de acelerar a economia e de ampliar os lucros do capitalista. Não lhes importa, então, que o miserável deixe a condição de miséria – desde que se torne consumidor. Não lhes importa a origem social do governante, porque sabem que isto não fará a menor diferença. Não precisam, por tudo isso, apelar a qualquer discurso moralizante ou distorcido, basta-lhes apresentar a realidade de crescimento econômico do Brasil ao longo dos últimos anos.

Não há, então, opção propriamente popular. Não está dada a opção por uma política de resistência ao capital. A escolha há de ser entre uma política pró-capital não esclarecida ou uma política pró-capital esclarecida. Para o capitalista minimamente consciente, a decisão é óbvia. Para quem não é capitalista, a imensa maioria da população, a decisão só pode ser estratégica.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/10/2010.]

domingo, 24 de outubro de 2010

[Crítica Social] Teologia e eleições

TEOLOGIA E ELEIÇÕES

Um lastimável episódio é o mínimo que se pode dizer sobre a discussão acerca do aborto que, nas últimas semanas, tomou conta da pauta do confronto eleitoral entre PT e PSDB. Lastimável nem tanto pelo seu alegado efeito – ter impedido a vitória da candidata do PT ainda no primeiro turno –, mas sobretudo pelo desvio que promove e pelo retrocesso ideológico que representa.

Trata-se de um enorme desvio porque reduz, do modo mais arbitrário e infeliz – embora isto tenha sido “devidamente” aproveitado em termos eleitorais –, o debate propriamente político a um debate personalista e despolitizado. Ora, é bem verdade que PT e PSDB já não apresentam diferenças de posição política tão significativas como outrora, mas ainda assim a disputa eleitoral não faz sentido senão como debate entre tais posições. A discussão sobre o aborto, nos termos em que tem sido apresentada, trata apenas dos pontos de vista pessoais dos candidatos, de suas posições subjetivas, de seus compromissos individuais com a “fé cristã” etc. O debate foi então atirado para o domínio das intenções pessoais – como se não se tratasse mais da escolha de um ocupante de cargo público, mas da decisão acerca de quem pode alcançar a “salvação da alma”...

Mais ainda, a discussão representa um retrocesso ideológico porque atinge a idéia mesma de um Estado laico e a garantia de liberdade de religião. Pois a estrutura política estatal não pode ter por base qualquer crença determinada, o poder político não pode ser exercido em prol de religião alguma. Mas o argumento religioso presente no debate atual é o de que o Estado brasileiro deve proibir o aborto e até mesmo punir criminalmente quem o praticar porque uma certa fé o vê como ato condenável. Em outras palavras, este argumento defende que o aborto deve ser crime porque é pecado. Num Estado laico, porém, crime e pecado só podem ser coisas muito diferentes.

É certo que o Brasil é um país de maioria cristã – e sabe-se que as religiões cristãs em geral condenam o aborto. Ainda assim, são situações muito distintas que uma mulher, diante de uma gravidez indesejada, deixe de realizar um aborto porque a sua religião proíbe, e que uma mulher, na mesma condição, deixe de realizá-lo porque poderia ser punida (inclusive com prisão) pelo poder público. Para uma mulher que não professe religião alguma, por exemplo, o temor da punição divina pelo aborto não faz qualquer sentido, mas a punição terrena e muito concreta imposta pelo Estado faz. Não é razoável, em nenhuma hipótese, que esta mulher seja forçada a agir de uma ou outra maneira em função de convicções religiosas que não são suas. A sua liberdade de religião – que inclui a liberdade de não ter religião alguma – então, é preciso reconhecer, já não existe. E se uma qualquer religião precisa, para garantir que um preceito seu seja cumprido, da força do Estado, então é preciso reconhecer, no mínimo, que o seu poder de renovar a “fé” dos seus “seguidores” está falhando. Para uma religião qualquer, admitir que o Estado é necessário para fazer cumprir “lei de deus” é o mesmo que admitir a sua própria falha como religião.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/10/2010.]

domingo, 10 de outubro de 2010

[Crítica Social] Número e sociedade

NÚMERO E SOCIEDADE

Não existe nada mais crível do que a estatística, o dado numérico, o gráfico. Pode-se, afinal, duvidar de tudo – visões políticas, posições teóricas, pontos de vista, ideologias etc. –, mas não se pode duvidar do número. Por isso quem quer se fazer crível, quem quer provar o que quer que seja, logo se apressa em apoiar o seu argumento num número qualquer.

Mas se é certo que o número é preciso, ainda é necessário perguntar: qual é a sua verdade? O que o número nos diz sobre a realidade? Já faz muitos anos, mas ainda me lembro de um exemplo a esse respeito dado certa vez por uma professora de matemática. Se uma pessoa come 100 kg de carne por ano e outra como zero, a média anual de consumo de carne das duas é 50 kg – uma delas, no entanto, continua de estômago vazio. O cálculo é absolutamente correto, mas o seu resultado não diz nada sobre o mundo real.

Isto não impede, porém, que hoje a eficiência estatística, como uma espécie de prova numérica incontestável do funcionamento ideal de qualquer coisa, tenha invadido e dominado todos os campos. Assim, por exemplo, um Judiciário estatístico se preocupa com o número de processos, com o número de sentenças, com o tempo médio de tramitação de uma ação, mas não se preocupa com o seu papel social ou com o sentido transformador ou conservador das suas intervenções. Uma saúde estatística se preocupa com o número de atendimentos, de cirurgias, de internações etc., mas não se preocupa com a qualidade do tratamento, com a desigualdade no acesso ao tratamento nas diversas classes sociais, com as necessidades reais sobretudo da população menos favorecida. Uma educação estatística se preocupa com o número de escolas, de universidades, de estudantes, de aprovações, mas não se preocupa com o tipo de formação que realiza, com fins a que se propõe, com o seu sentido social.

Trata-se, em suma, do domínio da quantidade sobre a qualidade, do cálculo de tudo, inclusive do incalculável, e do desprezo por tudo quanto não se deixa quantificar numericamente. Isto, por sua vez, não é senão demonstração do crescente domínio da lógica de mercado sobre tudo – no fim das contas, é a extensão do cálculo econômico, índice de uma louvada eficiência de mercado, sobre todas as áreas. No Judiciário, na saúde, na educação ou em qualquer outro setor, esta lógica penetra de modo a fazer encarar tudo como a produção mercantil, quantificável por excelência.

Calculáveis, sempre, são os custos de produção, as vendas, os lucros. Mas é diferente com as questões sociais. E não se trata de deficiência da matemática: é a própria realidade social que não se deixa captar numericamente, não se deixa calcular ou prever estatisticamente. O modo de compreendê-la há de ser outro. A complexidade da estrutura social é de uma ordem diversa daquela de que podem dar conta mesmo os modelos matemáticos mais sofisticados.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/10/2010.]

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

[Crítica Social] Sobre as eleições do próximo domingo

SOBRE AS ELEIÇÕES DO PRÓXIMO DOMINGO

As elites e classes médias paulistas parecem ter uma clara identificação com o PSDB. Já são, afinal, 16 anos de domínio contínuo deste partido no governo do estado – e, ao que tudo indica, mais 4 estarão garantidos no domingo. A despeito da resistência paulista, contudo, parece bastante improvável que, na cena federal, algo venha a impedir a vitória da candidata do PT.

Mas quais são, no fim das contas, as diferenças fundamentais entre os dois lados? Quais as perspectivas políticas verdadeiramente em confronto?

Do ponto de vista propriamente político, as diferenças entre os dois partidos estão hoje minimizadas. Não sei o PSDB sequer foi um dia contado como partido de esquerda, mas é certo que já não se pode fazê-lo tranqüilamente com o PT. São dois partidos de “centro”, se é que tal posição existe, embora o PSDB esteja relativamente mais à direita do que o PT.

Ambos se equivalem ainda no que diz respeito a contradições internas. Se, paradoxalmente, o partido da social democracia foi, ao longo dos anos 1990, o grande responsável pela neoliberalização do Brasil, concretizando o completo desmonte do aparelho de Estado e a abertura definitiva do país ao capital financeiro internacional, o partido dos trabalhadores, ao longo dos anos 2000, não reverteu essencialmente este quadro. É bem verdade que o governo do PT realizou reformas e criou programas sociais. O crescimento econômico do Brasil nos últimos anos foi, sim, considerável. A popularidade de Lula, afinal, não é mero acidente, nem se deve, como quer a grande mídia, a um puro e simples populismo. No entanto, nenhuma das intervenções do PT atingiu o nível estrutural, nenhuma delas promoveu transformações profundas na sociedade brasileira, como seria de se esperar de um partido identificado com a classe trabalhadora.

Alianças comprometedoras, do mesmo modo, serão encontradas dos dois lados. Acusam Dilma, ex-militante anti-ditadura, de estar aliada a velhos “caciques” cujo compromisso com a democracia é questionável. Por outro lado, o antigo PFL, atual “Democratas”, talvez o maior herdeiro da antiga ARENA, o partido de situação da ditadura militar, é aliado histórico do PSDB. O debate aqui se dá entre o sujo e o mal lavado (parece-me preferível, em todo caso, o mal lavado).

Como terceira e quarta forças, segundo as pesquisas, encontram-se o PV e o PSOL. O caráter de “alternativa” pelo qual a candidatura do PV quer vender-se é fragilíssimo: para além de um discurso ambiental limitado ao “desenvolvimento sustentável”, tenta apoiar-se na linguagem do “politicamente correto” para disfarçar posições não raro conservadoras. Quanto à candidatura do PSOL, trata-se da única efetivamente de esquerda, embora já um tanto amenizada – sofre, no entanto, por ter-se deixado reduzir, pela grande mídia, a uma espécie de “anedota”.

Como se vê, uma alternativa de transformação social radical está fora das opções dadas diante da urna eletrônica. Mas será que isto poderia mesmo ser diferente?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/09/2010.]

domingo, 26 de setembro de 2010

[Crítica Social] Escola e polícia

ESCOLA E POLÍCIA

Colocar um número fixo de policiais dentro de cada escola pública. Esta seria, segundo argumenta um candidato, a resposta adequada aos problemas da educação pública, sobretudo no que diz respeito ao controle disciplinar dos alunos e ao combate ao tráfico de drogas no interior das escolas. Eis uma surpreende proposta educacional...

Surpreendente, na verdade, não pelo simples fato de aparecer como proposta eleitoral. Qualquer coisa pode ser proposta eleitoral. Nas eleições, no fim das contas, impera um infeliz “vale tudo” que abre sempre espaço para qualquer argumento, mesmo os mais aberrantes e sem sentido. E é impossível não reconhecer que este apelo à temerária ideologia de “lei e ordem” convence mesmo parte dos eleitores...

Surpreende, contudo, que a educação seja encarada de uma tal maneira. Pois não se trata, neste caso, apenas de levar o poder armado para dentro de um espaço que deveria ser dedicado ao conhecimento. Não se trata apenas da exacerbação do controle policial e de formas de autoritarismo que, por vezes, imaginamos superadas desde o fim da ditadura militar. Trata-se do completo escracho de uma concepção distorcida da própria educação, uma concepção segundo a qual a educação deve dar-se por imposição, à força se preciso for.

Ora, o que esperar de uma educação assim? Num espaço em que a hierarquia entre a instituição escola e os estudantes é permanentemente reforçada, como esperar que o conhecimento seja, como deveria ser, construído em conjunto por professores e alunos? Como esperar que um estudante educado “na marra”, com as lições impostas “goela abaixo”, mais pelo medo da autoridade do que pelo respeito pelo conhecimento e pelo próximo, seja afinal formado para a sociedade e para a vida política?

O que, no fundo, escapa por completo a esta visão policial da educação é a compreensão de que a escola não é um espaço alheio, isolado do mundo ao redor. Se vivemos numa sociedade violenta, se assistimos em todos os lugares a uma “escalada” do crime, por que isto seria diferente na escola? Os problemas sociais aparecerão todos, sem dúvida, também na escola, porque a escola é parte da sociedade. Mas se a repressão policial não é a solução – visto que, na melhor das hipóteses, enfrenta as conseqüências, jamais as causas – para qualquer desses problemas fora da escola, por seria a solução dentro delas?

Uma escola diferente, radicalmente diferente, só é possível numa sociedade radicalmente diferente. Isto, porém, está muito além do discurso eleitoral...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 22/09/2010.]

domingo, 19 de setembro de 2010

[Crítica Social] Boa vontade e coragem

BOA VONTADE E CORAGEM

Boa vontade. Amor ao próximo. Compaixão. Bondade. Esperança. Parece haver muitas razões para crer no homem e em sua capacidade de moldar o seu próprio mundo. Talvez por isso, para quem entoa o coro dos inconformados, para todos aqueles que se põe contra o já estabelecido, para todos que se alinham politicamente à transformação, não à conservação do mesmo, a crença num insuprimível potencial da “natureza humana” para “o bem” acaba sendo uma saída sempre muito fácil e muito conveniente.

O homem que, segundo dizem, é, no fundo, sempre “bom”, acaba corrompido por viver sob as pressões e contingências de uma realidade que, no seu conjunto, não oferece saídas. Seria, portanto, possível “libertar” o homem desta realidade, porque dentro de cada homem residiria o próprio germe de uma realidade diferente, de uma sociedade diferente. Mas por que, então, mesmo ante a potência intrínseca para o “bem” em cada homem, o mundo dos homens é monstruoso? Por que, diante de um estoque tão imenso de boa vontade latente, não se supera a monstruosidade de uma sociedade na qual os homens são forçados a comercializar a si próprios como mercadorias, na qual a miséria de tantos é condição necessária para a opulência de uns poucos, na qual o capital é o núcleo de tudo?

Uma esperança, mesmo a mais arbitrária e irreal, tende a ser mantida tanto mais obstinada e cegamente quanto mais a realidade mesma negue as suas possibilidades. Ora, a sociedade não é simples produto ou somatória de vontades individuais, não é a boa ou má vontade de quem quer que seja que determina a sua permanência ou superação. A boa vontade de cada indivíduo pode, por exemplo na religião, levar à “salvação da alma”, porque cada um cuida de salvar apenas a própria alma. Mas a religião não pode ser, pelo menos não para além das portas do templo, uma visão de mundo consistente e socialmente conseqüente. Há de se constituir uma tal visão de mundo politicamente – e a lição da política é radicalmente diferente: a transformação social se faz apenas coletivamente, com luta.

Assim, não é preciso confiar a transformação da realidade humana à boa vontade. Não é preciso crer no homem, na sua natureza, nos seus intentos elevados. Basta saber – e sabe-se desde já quais os limites da sociedade presente, quais as suas mazelas, quais os caminhos para a sua superação. Nesse sentido, dentre todas as virtudes humanas, não são, então, a esperança ou o amor ao próximo as mais admiráveis. Mais admirável de todas é a coragem. Pois é a coragem para a luta, para o enfrentamento das enormes resistências, para o sacrifício pessoal que a luta demanda, enfim, a coragem para ousar e agir politicamente pela transformação da sociedade presente que pode contribuir, acima da pura vontade de qualquer indivíduo, para construir um outro mundo possível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/09/2010.]

domingo, 5 de setembro de 2010

[Crítica Social] O “politicamente correto” e o seu preço


[André Dahmer. Malvados. Fonte: www.malvados.com.br]

O “POLITICAMENTE CORRETO” E O SEU PREÇO

Impressiona como as mentes brilhantes e inquietas a serviço do mercado são capazes de converter toda a ideologia do “politicamente correto”, tão em voga ultimamente, em publicidade. Impressiona porque não há nada, a rigor, menos “politicamente correto” do que grande capital no seu movimento voraz e cego de lançar incessantemente mercadorias à circulação – e, ainda assim, cada mercadoria individual, que carrega em si o germe do fim do mundo, consegue ser apresentada ao público consumidor como uma pequena e instantânea dose de salvação.


Ora, se o discurso do “politicamente correto” precisa clamar contra a destruição do meio ambiente, contra o trabalho infantil, contra o cigarro, contra a embriaguez ao volante etc. é porque, antes de tudo, o grande capital, na sua avidez por multiplicar-se, não hesita consumir recursos ambientais e poluir desmedidamente, apelar às formas mais indignas de cooptação de trabalho mal pago ou vender as coisas mais insalubres e destrutivas imagináveis. Mas o capital é tão versátil que, mesmo sendo a causa última dos problemas, consegue utilizá-los para promover ainda mais as suas mercadorias. Tudo aquilo que, nas peças publicitárias e nas prateleiras dos supermercados, apresenta-se como “ecologicamente correto” ou “sustentável”, tudo aquilo que traz estampado o selo “produzido sem mão-de-obra infantil” ou que se proclama “saudável”, “orgânico” ou engajado em programas sociais de qualquer tipo, tudo isso, afinal, vende mais.

O paradoxo está dado diante dos olhos – se não o enxergamos é porque vivemos mesmo numa era de cegueira coletiva. Os cosméticos fabricados à custa da degradação da Amazônia são vendidos como “amigos do meio ambiente”. A empresa que importa roupas produzidas na China com trabalho semi-escravo apresenta-se como “amiga da criança”. A indústria do cigarro inclui, na própria embalagem dos seus produtos, publicidade contra o fumo, enquanto adiciona qualquer nova substância no próprio fumo para torná-lo ainda mais viciante. Ou seria por mero acaso ou modismo que todos os grandes bancos, enquanto assistem às suas taxas de lucros batendo recordes, querem abrir um “centro cultural” próprio? Ou seria por pura boa vontade que as grandes detentoras dos veículos de comunicação brasileiros promovem periodicamente campanhas sociais?

O discurso do “politicamente correto”, por melhores que sejam as suas intenções, é rapidamente assimilado pelo grande capital e, a seguir, revertido. O sumamente “incorreto” vende-se travestido – e o consumidor, que não sabe como lidar os próprios anseios por mudança senão consumindo, compra as mercadorias estampadas com o selo hipócrita da salvação imaginando comprar a própria salvação. O caminho da mudança, contudo, não é, nem jamais poderá ser, o mercado – é, só pode ser, a luta, o enfrentamento, a política.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/09/2010.]

domingo, 29 de agosto de 2010

[Crítica Social] Sobre a “boa vontade” e o “voto consciente”

SOBRE A “BOA VONTADE” E O “VOTO CONSCIENTE”

Ao deparar com os vários fracassos da democracia formal brasileira, o senso comum, cuidadosamente alimentado pelas interpretações tendenciosas e meias-verdades da grande mídia, não consegue supor outra causa para o problema que não a “qualidade” dos políticos profissionais eleitos. Os escândalos de corrupção, a venalidade dos políticos, as cobranças que recaem sobre o parlamento por “respostas” às questões sociais brasileiras, tudo isso transparece abusivamente reduzido a uma suposta incapacidade do eleitorado para a escolha “correta” dos seus representantes.

Ora, a solução para este problema, dizem-nos as campanhas de conscientização veiculadas na TV ou a publicidade institucional da Justiça Eleitoral, é simples: o eleitor deve aprender a votar. É o reiterado discurso do “voto consciente”, segundo o qual o eleitor deve analisar cuidadosamente seus candidatos, procurar informar-se sobre o passado e as propostas de cada um deles etc. Esta “filtragem” mais rigorosa garantiria a erradicação de todos os males: políticos “melhores”, afinal, não seriam corruptos e dariam mais atenção às reivindicações da sociedade que representam.

Uma tal “solução” não vai, porém, além do nível mais superficial. O seu fundamento é uma aposta teimosa e reducionista na “boa vontade” como salvação. Bastaria, nesse sentido, escolher políticos verdadeiramente dispostos, honestos, sérios e cheios de boas intenções, ao invés dos corruptos e interesseiros, para que tudo funcione de maneira ideal.

Há, neste argumento, para dizer o mínimo, dois grandes defeitos. Em primeiro lugar, a responsabilidade pelas deficiências da representação política é inteiramente reputada aos eleitores. É evidente que é melhor não eleger os oportunistas e velhacos de sempre, mas o apelo cego ao “voto consciente” ignora por completo as razões pelas quais os eleitores votam em quem votam. Desconsidera-se, pura e simplesmente, o poder de convencimento do marketing eleitoral, a influência dos grandes interesses econômicos privados que financiam campanhas e tudo mais que, muito além da consciência individual, acaba por formar a opinião política do eleitor.

Em segundo lugar, o argumento do “voto consciente” e da “boa vontade”, ao supor que o problema exclusivo do sistema político instituído são as pessoas que o ocupam, deixa inteiramente de lado o sistema mesmo. A democracia formal, independentemente dos homens que a perfazem, tem problemas. O sistema representativo é falho. Tais falhas não são acidentais: são impostas, no que é mais grave, pela condição inescapável do Estado como aparelho de poder separado e oposto às massas populares. Isto, na essência, não pode ser resolvido pelos representantes eleitos, por mais “boa vontade” que tenham. É preciso transformar o próprio sistema político, o que em última análise significa que é preciso transformar a estrutura social presente. Mas o argumento voluntarista não pode ir tão longe – e não por acaso: ele não só não mostra, mas, na verdade, ajuda a esconder aquilo que, nas profundezas da realidade política, não pode sequer ser visto.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/08/2010.]

domingo, 22 de agosto de 2010

[Crítica Social] Supermercado eleitoral

SUPERMERCADO ELEITORAL

A publicidade partidária na TV aberta, com vistas às eleições de outubro próximo, acaba de começar. Isto quer dizer, noutras palavras, que o período mais acirrado da disputa eleitoral acaba de se abrir. A propaganda eleitoral, afinal, cuidará de sacramentar, em definitivo, as frações de votos de cada candidato: o que tiver que ser alterado, se é que será, até outubro, há de se realizar através dos programas de TV.

No entanto, a “linguagem” da publicidade partidária, se é que assim se pode dizer, não é a da política, não é, em primeiro plano, a da cidadania ou a da democracia. A sua “linguagem” é a linguagem própria da publicidade mercantil, da propaganda ordinária que se tornou onipresente na sociedade capitalista hodierna, da propaganda para a venda de produtos e serviços quaisquer. No fim das contas, os candidatos não são apresentados por suas ideologias políticas, por suas propostas de atuação, por suas posições diante das tantas lutas do nosso tempo – são apresentados como mercadorias à venda.

Assim como sabão em pó, carros, aparelhos eletrônicos etc., os candidatos são colocados, pela propaganda partidária, como que “à venda” – à disposição não de eleitores, não de cidadãos, mas de consumidores. Tanto quanto se cuida da “embalagem” da mercadoria, tanto quanto se constrói a “imagem” do produto, tanto quanto se promete “satisfação garantida” ao consumidor, assim também se dá a publicidade dos candidatos. Tudo se resume, então, a um grande supermercado eleitoral: os candidatos, como que dispostos em prateleiras, são escolhidos pelos eleitores em função da publicidade que previamente os convenceu, assim como as mercadorias são escolhidas, no momento da compra, pelo consumidor previamente seduzido pela publicidade.

Não se trata, porém, de uma compra. Na política há muito mais em jogo. Trata-se, afinal, do campo em que as lutas sociais devem encontrar a sua máxima expressão, através do qual o domínio de grupos sociais sobre outros se realiza, no qual tal domínio pode vir a ser revertido. Se a política se rende ao marketing mercantil, então tudo está perdido desde o princípio. Se a política se rende à circulação mercantil e ao poder da grande mídia, então a própria política, em verdade, está perdida.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/08/2010.]

domingo, 15 de agosto de 2010

[Crítica Social] O verde e o vermelho

O VERDE E O VERMELHO

O fato de uma das principais campanhas na eleição presidencial deste ano ter como base um discurso ambiental indica que o tema tem atraído atenção e preocupação crescentes entre os brasileiros. Trata-se de um bom sinal, visto que demonstra uma conscientização acerca da gravidade do esgotamento iminente do meio ambiente – conscientização sem a qual, não há dúvida, tal esgotamento não poderá ser impedido.

Por outro lado, o discurso ambiental, por si só, não é suficiente. Não basta constatar a destruição do meio ambiente, não basta apontar as conseqüências desta destruição. Árvores não se derrubam sozinhas, solo não se contamina por si, ar e água não se poluem por conta própria. É preciso conhecer sobretudo as causas da destruição do meio ambiente – e estas residem na estrutura econômica sobre a qual se erige a sociedade presente. É, afinal, a formação econômica fundada no valor de troca, no lucro, na acumulação infinita e, de um outro ponto de vista, num consumismo cada vez mais insanamente sem medida que leva a um “consumo” do meio ambiente igualmente insano e sem medida.

Assim, um discurso ambiental, embora absolutamente necessário, é inócuo se desacompanhado de um discurso social crítico. Quero dizer, não pode haver uma verdadeira defesa do meio ambiente desconectada de uma ação mais abrangente, mais profunda, crítica radical da formação econômica capitalista. Qualquer proposta política que se pretenda “verde”, ou seja, que se pretenda engajada na proteção do meio ambiente, não estará verdadeiramente perseguindo os seus objetivos declarados se não tiver sustento numa proposta radical de transformação social. Sem isso, o discurso ambiental não é mais do que uma “maquiagem verde” do mesmo, do já estabelecido: sem combate às causas, sem uma mudança profunda da estrutura geradora da desmedida na exploração dos recursos ambientais, não pode haver nenhuma autêntica preservação do meio ambiente.

O discurso supostamente “verde” e, ao mesmo tempo, a favor do grande capital não pode ser, portanto, um discurso ambiental autêntico. Se o grande capital é um grande devorador da natureza, então é preciso enfrentá-lo para defender o meio ambiente. É preciso, mais ainda, superar a organização social determinada pelo grande capital: pois só é possível transformar o modo pelo qual os homens se relacionam com a natureza ao transformar o modo como os homens constituem a sua sociedade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 11/08/2010.]

domingo, 8 de agosto de 2010

[Crítica Social] Sobre a proibição do aborto no Brasil

SOBRE A PROIBIÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Segundo pesquisa recentemente divulgada pela Universidade de Brasília, estima-se que 1 em cada 5 mulheres brasileiras de até 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto. Noutras palavras, 15% das brasileiras, ou seja, mais de 5 milhões de mulheres já teriam, em algum momento da vida, interrompido pelo menos uma gravidez.

Tais interrupções, é claro, ocorreram ilegalmente, uma vez que o direito brasileiro considera o aborto como crime – exceto nos casos excepcionais em que a gravidez resulta de violência sexual ou em que representa risco de vida para a mãe. Isto implica que, a despeito de realizados na ordem dos milhões, os procedimentos abortivos são invariavelmente levados a cabo de maneira clandestina, em geral através de medicamentos proibidos, perigosamente ministrados sem acompanhamento médico, ou em “clínicas” precárias, sem as condições higiênicas e sem os recursos necessários para um atendimento médico adequado. Milhares de brasileiras têm, assim, a sua saúde afetada anualmente, muitas das quais acabam morrendo em função das conseqüências desses procedimentos médicos inadequados – não é por acaso que a cirurgia mais realizada pelo SUS entre 1995 e 2007, com um total de 3,1 milhões de ocorrências, foi a curetagem após o aborto, em geral realizada emergencialmente após as complicações do procedimento clandestino.

Isto prova que é preciso, no mínimo, repensar a própria proibição do aborto. Afinal, se a proibição, por si, não é capaz de impedir a realização de procedimentos abortivos, nem mesmo de minimizar a sua ocorrência, então a sua única conseqüência tem sido “empurrar” a prática do aborto para as condições precárias e degradantes da clandestinidade. Ora, se, no fim das contas, o fundamento para a proibição do aborto é a proteção da vida, é necessário reconhecer que se está caminhando no sentido contrário: a vida do feto não está sendo protegida e, o que é mais grave, a vida de milhões de mulheres está sendo absurdamente colocada em perigo.

Se, no entanto, o fundamento para a proibição do aborto estiver lastreado em convicções religiosas, a situação é ainda mais absurda. Pois é muito diferente que uma mulher seja impedida de realizar aborto em função de suas crenças religiosas e que seja impedida por determinação legal imposta por um Estado laico. Cada religião pode, sem dúvida, estabelecer os padrões de conduta que espera de cada um de seus seguidores, mas os mandamentos de uma religião, seja qual for, não podem ser estabelecidos universalmente, através do poder público, inclusive para quem é adepto de outras religiões ou de religião nenhuma.

Em suma, há que se considerar, em primeiro lugar, a questão de saúde pública. Uma eventual legalização do aborto não fará mais do que reconhecer a realidade estabelecida e, uma vez que venha a permitir a realização da interrupção da gravidez em condições adequadas, poderá salvar muito mais vida do que a proibição tem conseguido.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/08/2010.]

domingo, 1 de agosto de 2010

[Crítica Social] Desenvolvimento e desigualdade

DESENVOLVIMENTO E DESIGUALDADE

Na última sexta-feira, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou relatório sobre o desenvolvimento humano da América Latina, região que apresenta os maiores índices de desigualdade do mundo. Sua maior novidade é uma nova metodologia de cálculo do IDH (índice de desenvolvimento humano, que varia de 0 a 1), o IDH-D, que procura computar, por meio de estatísticas ligadas a renda, educação e saúde, as conseqüências da desigualdade social. Resultado: IDH-D dos países latino-americanos foi em média 19% inferior ao IDH tradicional.

O IDH do Brasil, por exemplo, segundo dados de 2007, é de 0,777. O IDH-D, no entanto, é de 0,629. O que esta queda procura demonstrar é o quanto a desigualdade social “corrói” qualquer perspectiva de desenvolvimento. Afinal, as médias de renda per capita, de acesso à educação formal ou à saúde podem apontar um país cujos índices estão cada vez mais distantes da indigência, mas também um país que simplesmente não existe na realidade. No Brasil, como bem se sabe, a disparidade entre as camadas mais pobres e mais ricas da população brasileira em qualquer desses quesitos é enorme.

Ora, quantos IDH diferentes poderiam ser calculados aqui? Qual o tamanho da disparidade social brasileira? O IDH do Brasil mais rico seria, sem dúvida, muito próximo daquele dos países mais desenvolvidos, mas muitíssimo diferente do IDH do Brasil mais pobre. Isto porque é possível vivenciar no Brasil, quase lado a lado, a mais desmedida opulência e a mais constrangedora miséria. Numa mesma cidade, não raro, bairros caríssimos, repletos de mansões milionárias, são vizinhos de comunidades irregulares, paupérrimas, de habitações precaríssimas, carentes de água, esgoto, luz elétrica, transporte etc. Um pequeno séquito de milionários ou bilionários, cujas exigências de consumo só são satisfeitas pelo mercado de itens de luxo, convivem num mesmo país com tantos que não têm acesso sequer ao indispensável: alimento, água, moradia etc. E isto num país em que a idéia de “hierarquia social”, herdeira de tempos nobiliárquicos e senhoriais, jamais foi resolvida, em que a discriminação em função da classe social é enorme, em que questões raciais gravíssimas estão distantes de qualquer solução, em que a disparidade regional (sul-sudeste vs. norte-nordeste) é enorme...

Nenhum número, no fundo, pode dar conta da desigualdade brasileira. De todo modo, os números divulgados pela ONU sinalizam algo que, em verdade, está dado a olhos vistos na sociedade brasileira: o “desenvolvimento humano”, se aqui existe, é de alguns, não de todos.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 28/07/2010.]

domingo, 25 de julho de 2010

[Crítica Social] Show de horror da vida

SHOW DE HORROR DA VIDA

Uma peculiar mistura de crime, escândalo sexual, violação dos “valores” tradicionais da família e da religião e, mais ainda, um jogador de futebol. A acusação contra Bruno, ex-jogador do Flamengo, caiu como uma luva para grande mídia ainda órfã da eliminação do Brasil na Copa do Mundo e ainda à espera do período mais “quente” da disputa eleitoral, desejosa de qualquer objeto de sensacionalismo. Tornou-se assim uma espécie de romance policial, cheio de suspense e de reviravoltas, apresentado em capítulos diários – algo como uma novela, só que apresentada no noticiário, como um caso (supostamente) real, um reality show de horror.

No entanto, se Bruno é ou não responsável pela morte de Eliza não importa aqui. Discutir tão atentamente uma única acusação de homicídio, apenas porque envolve um esportista famoso, é por si só um absurdo num país em que homicídios ocorrem a todo instante, vitimando sobretudo a população mais pobre. Escandalizar-se com uma única morte violenta é um absurdo onde a violência atinge tantos, sobretudo nas áreas mais marginalizadas, a violência da miséria que não cessa, a violência policial herdeira dos períodos políticos mais autoritários que persiste, a violência do crime organizado etc. Absurdo porque as tantas mortes violentas que ocorrem diariamente ao redor, porque não aparecem na grande mídia, não são discutidas, não nos escandalizam – em verdade, no geral sequer nos preocupam, como se não fossem problema nosso.

O sensacionalismo da grande mídia parece querer apelar ao “pior do homem”, a imagem do criminoso completamente cruel e sem sentimentos usada para chocar e prender a atenção do público. Esquece-se, no entanto, de que não há homem fora da sociedade. Esquece-se de que não há homem “sadio” numa sociedade “doente”. Negligencia-se, assim, por completo, o que há de pior na própria sociedade, na nossa sociedade. A grande mídia “contribui”, deste modo, para que cada um de nós ignore a própria responsabilidade. Culpamos Bruno, culpamos o casal Nardoni, culpamos os “políticos corruptos”, culpamos sempre o “outro”, aquele que mídia expõe como o grande “vilão” do momento, mas a responsabilidade de qualquer destes pela sociedade estruturalmente excludente, violenta, cheia de miséria em que vivemos não é maior do que a de qualquer outro.

A visão simplificadora que apresenta o crime e a violência como produtos da “maldade” humana, frutos de desvios de caráter do indivíduo, é leviana. A desigualdade, a miséria, a exclusão é que produzem a violência. O show de horror da vida não é televisionado, é a vida real. Mas isto não causa sensacionalismo. A postura da grande mídia nos reconduz, se é possível uma tal comparação, ao coliseu. Bruno será jogado aos leões, como tantos antes, como outros serão depois. Em breve, os candidatos às eleições de outubro estarão se enfrentando como gladiadores. E cada um de nós apenas se entretém com a execração alheia enquanto o mundo ao redor desmorona. Somos comprados pelo mesmo pão e circo – se bem que muito mais circo, é verdade – de antes.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/07/2010.]

domingo, 18 de julho de 2010

[Crítica Social] Milagre da multiplicação?

MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO?

A Copa do Mundo de 2010 terminou. A Copa do Mundo de 2014, no entanto, está apenas começando. Ao longo dos próximos 4 anos, para que o Brasil esteja “à altura” de sediar este que é considerado um dos mais importantes eventos esportivos do mundo, serão milhões e milhões de reais investidos em infra-estrutura de transportes, hotéis, estádios etc. Em outras palavras, cifras milionárias investidas em “maquiagem” urbana e arenas esportivas cuja utilização primordial será dada por turistas de classe média alta – ou seja, não pela população local de baixa renda – durante um mês no ano de 2014.

As notícias dão conta que, na Copa da África do Sul, o gasto apenas com a construção e reforma dos estádios foi de cerca de 3,5 bilhões de dólares. E não faltam, mesmo entre os sul-africanos, movimentos que questionam a verdadeira utilidade social disto. No Brasil não será diferente: o orçamento oficial dos preparativos para 2014 é, até o momento, de 17 bilhões de reais (mas vale lembrar que o custo final da Copa de 2010 foi 10 vezes superior ao orçamento inicial).

A grande questão aqui talvez seja: de onde pode surgir tanto dinheiro? E a questão ganha relevância sobretudo quando se trata de um país que, embora “em desenvolvimento”, é ainda contado entre as áreas mais pobres do mundo, com altos índices de exclusão social, com uma série de gravíssimos problemas sociais absolutamente por resolver e permanentemente carente de recursos para investimentos sociais. Afinal, se é possível reunir tanto dinheiro, por que investi-lo em uma competição esportiva e não, por exemplo, no enfrentamento à miséria?
É bem verdade que os gastos públicos com a Copa do Mundo terão algum retorno, por exemplo com a geração (pelo menos temporária) de empregos, com a publicidade turística do Brasil no exterior, com obras que poderão ser úteis mesmo depois do período dos jogos. Se, no entanto, os benefícios para a população brasileira fossem a prioridade, não seria necessário esperar o retorno: o investimento direto dos bilhões de reais em algumas questões cruciais seria, com absoluta certeza, muito mais eficiente.

Porém, é certo que, para o enfrentamento à desigualdade social, tantos bilhões não surgiriam tão facilmente. Que ninguém se engane, o investimento para a Copa não é um investimento para a população, não é um investimento pela “beleza do esporte”, mas sim um investimento para os capitais que, com o evento, terão seus lucros multiplicados. É mais ou menos o mesmo que ocorre nos momentos de crise econômica, quando do dia para a noite somas astronômicas surgem para o socorro público aos bancos privados. O dinheiro “milagrosamente” se multiplica, mas apenas para o que interessa. E nenhum capital está interessado em redistribuição de renda, em direcionamento de recursos para a camada menos privilegiada da população – aqui ou na África do Sul ou em qualquer outro lugar...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 14/07/2010.]

segunda-feira, 12 de julho de 2010

[Crítica Social] Água, óleo, dólares

ÁGUA, ÓLEO, DÓLARES

Em abril último, após um acidente na plataforma Deepwater Horizon, da empresa British Petroleum, que retirava petróleo do fundo do Golfo México, um enorme vazamento de petróleo no mar teve início. Estima-se que algo entre 35 e 60 mil barris de petróleo vazam diariamente – um barril tem cerca de 159 litros, portanto o vazamento pode chegar a cerca de 9,5 milhões de litros diários de petróleo –, num total, ainda segundo estimativas, que pode ultrapassar os 3,5 milhões de barris ao longo de mais de 70 dias.

Já se considera este um derramamento de petróleo sem precedentes, simplesmente o maior da história. A catástrofe ambiental piora a cada dia, atinge centenas de espécies, ameaça ecossistemas, já atinge as praias de vários estados dos EUA e se apresenta como uma enorme mancha de petróleo flutuando nas águas do Golfo do México. A despeito dos esforços de contenção do vazamento e de “limpeza” do petróleo já derramado, a contaminação certamente levará anos para ser completamente dissipada.

Estranho é que, ao que parece, não se consegue lidar com a situação senão pela avaliação monetária. Basta acompanhar os noticiários para constatar. Logo após o incidente, a maior discussão girava em torno do limite, em dólares, dos custos que deveriam ser arcados pela British Petroleum na recuperação da área. Depois, semana após semana, é notícia infalível em todos os jornais a atualização dos recursos já desembolsados pela empresa – a última dá conta de um total de 3,12 bilhões de dólares. E sempre que se pretende mostrar os enormes danos decorrentes do petróleo derramado, a única medida aparentemente possível é dada em dólares, pelos “prejuízos” causados, cujas cifras são sempre mais do que milionárias.

Os “prejuízos”, no entanto, vão muito além daquilo que os dólares podem alcançar. Não quero com isso, é evidente, negar o aspecto econômico do desastre – para os pescadores, para todos aqueles cujos empregos dependem do turismo, para a população das áreas atingidas pela mancha de petróleo certamente os danos econômicos serão muitos mesmo. Por outro lado, o dano propriamente ambiental, isto é, a destruição do meio ambiente causada pelo vazamento, não pode sequer ser avaliada monetariamente. Os animais mortos, a fauna marinha afetada, os ecossistemas contaminados, tudo isto está além do que pode ser quantificado em qualquer moeda. Nenhum dinheiro poderá, afinal, desfazer tal dano.

A sociedade capitalista, mesmo diante da catástrofe, não é capaz de tomar a natureza senão como mercadoria, senão como coleção de recursos cujo único aproveitamento possível é mercantil. Mesmo que a sobrevida humana na Terra dependa da natureza, mesmo que a exploração desmedida do meio ambiente aponte para a extinção da própria espécie homo sapiens, ainda assim não se é capaz de ver a natureza de outro modo. O dinheiro, no entanto, não pode tudo...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/07/2010.]

domingo, 4 de julho de 2010

[Crítica Social] Pescarias e peixes

PESCARIAS E PEIXES

Há ditados da sabedoria popular que, em muitas situações, expressam grandes verdades. Por outro lado, pretender explicar ou buscar compreender tudo a partir de ditados populares é algo que de nenhum modo pode ser satisfatório. A realidade é, afinal, sempre mais complexa, mais tortuosa e mais opaca do que aquilo que se pode condensar num chavão.

Assim ocorre com o ditado popular segundo o qual “é melhor ensinar a pescar do que dar o peixe”. Não há quem nunca tenha ouvido esta frase. O seu significado, para além da metáfora, é o seguinte: melhor ensinar a fazer e gerar autonomia do que prestar o socorro mais imediato e deste modo correr o risco de gerar dependência. Em geral, isto é mesmo verdade – mas nem sempre...

Há casos em que o socorro imediato – o “dar o peixe” – não é dispensável. Freqüentemente se pergunta, por exemplo, sobre programas assistenciais do governo federal, como o “Fome Zero” e o “Bolsa Família”. É evidente que não são as opções ideais, mas, diante de um cenário que está muito distante mesmo do ideal, mostram-se como alternativas que não podem ser inteiramente desprezadas. Melhor seria, sem nenhuma dúvida, uma transformação econômica radical, profunda o bastante para extirpar a simples possibilidade da miséria. Mas a condição famélica mais atroz não pode esperar tanto. Se a escolha deve ser dada entre o “dar o peixe” ou a completa omissão, quero dizer, entre prestar simples assistência ou permitir que se morra de fome, então só se pode escolher a primeira. Isto, claro, não elimina as distorções a que estão sujeitos os referidos programas governamentais, bem como não os eleva necessariamente acima de um repugnante assistencialismo eleitoreiro – impõe, porém, reflexões que não “cabem” dentro da metáfora da pescaria e do peixe.

Outro exemplo bastante discutido é o das cotas raciais ou sócio-econômicas nos exames vestibulares das universidades públicas brasileiras. Também neste caso não há dúvida de que, em absoluto, não se trata da melhor opção. Melhor mesmo seria, é evidente, que a população negra e a população advinda das classes sociais menos favorecidas tivessem condições plenas de disputar as vagas nas universidades de igual para igual com a elite branca brasileira. Isto, no entanto, exige um longo e custoso processo de aperfeiçoamento do ensino público básico, algo pelo que não é razoável esperar de braços cruzados. As cotas aparecem, então, no curto prazo, como uma alternativa bastante eficaz de “remediar” a situação.

Negar terminantemente o “dar o peixe” não pode ser, portanto, regra absoluta. O que não se pode admitir é que esta seja a única providência. Não se pode admitir que o assistencialismo prossiga sem que as transformações necessárias sejam implementadas ou que as cotas, uma vez estabelecidas, sejam manipuladas para omitir as ações mais profundas que poderiam tornar a próprias cotas desnecessárias no futuro. Contudo, aqui e agora, enquanto nem todos têm acesso ao rio, enquanto nem todos têm a mesma oportunidade de aprender a pescar, algo precisa ser feito...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/06/2010.]

domingo, 27 de junho de 2010

[Crítica Social] Estatuto da igualdade racial – 10 anos depois

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL - 10 ANOS DEPOIS

Decorridos, ao todo, mais de 10 anos de discussão e cerca de 9 meses desde a aprovação pela Câmara dos Deputados, o Estatuto da igualdade racial finalmente venceu, na última quarta-feira, a última etapa de sua tramitação no legislativo federal, tendo sido aprovado em votação plenária pelo Senado. O texto aprovado é, no entanto, bastante diferente daquele originalmente apresentado, na forma de projeto, pelo deputado Paulo Paim em junho de 2000: o “preço” pago pela aprovação pelo Congresso Nacional acabou sendo a eliminação de um alguns de seus dispositivos mais avançados e mais importantes.

Alterou-se, por exemplo, a determinação de que a propriedade das terras que abrigam remanescentes de quilombos seja devidamente atribuída às comunidades que tradicionalmente as ocupam. Suprimiu-se, a esse respeito, a especificação do processo administrativo que daria efetividade à norma legal – o que significa, na prática, que a lei já nasce como “letra morta”. A exigência partiu da assim chamada “bancada ruralista” do Congresso, obviamente interessada na perpetuação da absurda distribuição fundiária brasileira, mas as conseqüências atingem sobretudo uma parcela absolutamente desprivilegiada da população, vítima de escancarada violência institucional desde os mais remotos tempos da escravidão e, ainda hoje, mais de 120 anos depois da abolição, juridicamente excluída. Os itens suprimidos poderiam contribuir para superar tal situação marginal das comunidades quilombolas – outros interesses, porém, “tiveram” que prevalecer.

Mais ainda, suprimiu-se praticamente todo o sistema de ações afirmativas que constituía o núcleo do projeto apresentado em 2000. O texto definitivo manteve apenas uma designação genérica – sem fixar mecanismos, percentuais ou prazos – de cotas para a população negra nas instituições públicas federais de ensino. O projeto original, no entanto, previa um sistema de cotas muito mais completo e determinado, com percentual mínimo de 20% em todos os concursos públicos (federais, estaduais e municipais) e em todas as instituições de ensino superior (públicas e privadas), bem como em todas as empresas que tivessem mais de 20 empregados.

Ora, é bem verdade que as cotas não são unanimidade, mas é inquestionável que, a curto prazo, constituem o mecanismo jurídico de ação mais eficaz e que mais diretamente atinge o problema gravíssimo da desigualdade histórica da população negra brasileira. A supressão de um tal mecanismo não se deu após um debate público sério e abrangente sobre a questão, mas exatamente para evitá-lo, quero dizer, através de um melindre político cujo objetivo não foi outro senão evitar o envolvimento direto da população na discussão. Assim, o Estatuto da igualdade racial, que poderia ser um instrumento importante na luta pela inclusão da população negra brasileira, em verdade só pôde tornar-se lei após o seu desmonte. A inocuidade antecipada, filhote do temor de qualquer transformação mais profunda, parece ser o preço a pagar por qualquer tentativa de avanço.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/06/2010.]

domingo, 20 de junho de 2010

[Crítica Social] Sobre a greve nas universidades paulistas

SOBRE A GREVE NAS UNIVERSIDADES PAULISTAS

Já há mais de um mês os funcionários das três maiores universidades públicas paulistas – USP, Unesp e Unicamp – estão em greve. A resistência das respectivas reitorias às reivindicações faz, ainda neste momento, com que não haja perspectivas próximas de retorno. Como sempre, a grande mídia condena a paralisação. Parte dos estudantes e dos professores também recusa sua solidariedade aos funcionários. Ao que parece, no entanto, poucos se preocupam em investigar realmente quais os motivos da greve.

Em março último, o governo de São Paulo aprovou um reajuste salarial de 6% aos professores – e apenas aos professores, não aos demais funcionários – das universidades públicas do estado. A isonomia, dentro da universidade, entre os funcionários docentes e os funcionários não-docentes foi, assim, inteiramente violada: não apenas salários diferentes, mas um tratamento diferente, com aumentos sendo concedidos a uma categoria e não às demais. Esta é a principal razão da insatisfação dos funcionários.

Tal diferença de tratamento reforça uma espécie absurda de “hierarquia” no interior da universidade, como se houvesse um “degrau” entre os docentes e os demais funcionários. Reforça-se, em verdade, a distinção entre trabalho intelectual e trabalho manual, como se os docentes realizassem todo o trabalho diretivo relevante e os funcionários apenas executassem mecanicamente as decisões superiores, merecendo estes, então, um tratamento inferior. Esta distinção é obviamente estabelecida em prejuízo do trabalhador, sempre como meio de desqualificação de suas atividades e, por isso mesmo, deve ser combatida – mais ainda no ambiente da universidade que, exatamente por ser um ambiente intelectualizado, deveria ser exemplar a este respeito.

O reajuste salarial concedido apenas a uma categoria dá a entender, no fim das contas, que os docentes, porque ministram as aulas, seriam indispensáveis para a universidade, mas os funcionários, tratados como meros “serviçais”, não. Isto é absolutamente falso. Não é possível sequer a existência das aulas sem os funcionários, bem como não seriam possíveis sem os funcionários nenhuma das demais atividades da universidade. Não há e não pode haver qualquer oposição entre o trabalho do docente e o trabalho do funcionário porque a universidade não pode ser senão o conjunto paritário destes com os estudantes.

A reivindicação dos funcionários tem, portanto, mais peso do que uma simples reivindicação salarial. Trata-se de reivindicação que deveria ser de toda a universidade, um protesto contra a inferiorização do trabalhador. Assim, embora a greve possa prejudicar pesquisas, suspender atividades de extensão e alterar o calendário universitário, é preciso reconhecer as razões dos funcionários. É preciso, mais ainda, reconhecer a legitimidade de sua exigência. Pois, neste momento, os funcionários encarnam a luta pelo melhor da universidade pública.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/06/2010.]

domingo, 13 de junho de 2010

[Crítica Social] Homofobia e direito

HOMOFOBIA E DIREITO

Segundo pesquisa divulgada pela Folha de São Paulo na última sexta-feira (04/06, p. C1), a maioria dos brasileiros é ainda contra a adoção de crianças por casais homossexuais. Embora não seja contundente – o percentual exato dos entrevistados que se manifestaram contrariamente foi de 51%, portanto apenas ligeiramente acima da metade –, o resultado aponta a persistência entre nós de um preconceito longamente estabelecido e de difícil superação. Um preconceito que, indiscutivelmente, perpetua-se também através do direito.

É bem verdade que têm ocorrido conquistas jurídicas importantes, como a recente decisão do STJ, proferida em abril último, que assegurou o direito de adoção a um casal homossexual do Rio Grande do Sul. Mas há ainda grandes resistências a vencer, resistências quase sempre ligadas a perspectivas de mundo bastante retrógradas. Por que, afinal, um casal homossexual, diversamente de um casal heterossexual, não poderia adotar? Há incontáveis casais heterossexuais absolutamente incapazes de cuidar de uma criança e de educá-la, assim como há tantos outros muito bem preparados psicológica e emocionalmente para tanto – por que motivo este balanço seria diferente entre os casais homossexuais? Qual critério deve ser ponderado, no fim das contas, pelo Judiciário, no momento de decidir sobre a adoção: o preparo dos candidatos para cuidar da criança ou a opção sexual destes? O que realmente importa para a criança?

Ora, se há entre nós igualdade perante o direito, pura e simplesmente não há justificativa jurídica plausível para negar a um homossexual, tão-somente pela sua opção sexual, qualquer direito que poderia vir a ser fruído por um heterossexual. Isto se aplica, sem nenhuma dúvida, aos casos de adoção. E, se não há o que discutir, a simples existência de pendências judiciais a respeito indica a persistência da arbitrariedade. Quero dizer: a rigor, não há um direito pelo qual lutar, pois este direito já está constitucionalmente garantido de pronto, mas, se é ainda negado, isto só pode dar-se arbitrariamente. E é esta arbitrariedade que faz persistir institucionalmente, da forma mais absurda, a discriminação contra os homossexuais no Brasil.

Pior ainda é a situação do casamento entre homossexuais. Se um heterossexual tem direito a se casar, sob qual argumento isto poderia ser razoavelmente negado a um homossexual? Ou, noutras palavras, se é universalmente assegurado o direito de casar-se com uma pessoa do sexo oposto, por que motivo não seria juridicamente possível casar-se com uma pessoa do mesmo sexo? Se uma tal distinção se perpetua, então a igualdade jurídica, mesmo no seu sentido mais formal, é vilipendiada. E aqui o direito revela a sua fragilidade: a igualdade jurídica não faz desaparecer, na realidade, as mais diversas formas de desigualdade, inclusive aquelas manifestas sob a modalidade de discriminação. A luta contra a homofobia não pode ser, por isso, uma simples luta no direito e por direitos, mas deve ser também uma luta para além do direito.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/06/2010.]

domingo, 6 de junho de 2010

[Crítica Social] Futebol e política

FUTEBOL E POLÍTICA

Seria uma obviedade denunciar as ligações nem sempre claras, sobretudo no Brasil, entre futebol e política. Afinal, num país no qual o futebol ocupa tanto das atenções da população, no qual é socialmente necessário “torcer” por uma equipe qualquer deste esporte, no qual o símbolo máximo da identidade nacional é a camisa da seleção brasileira de futebol, tais ligações não poderiam mesmo estar ausentes. Ainda assim, parece que o assunto não pode ser deixado de lado.

Ora, num contexto como o nosso, no qual há um esporte absolutamente preferido, é notório que as atenções voltadas para o futebol podem rapidamente deixar de lado todo o noticiário que não o esportivo. A importância – direta ou indireta – da vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970 para ditadura militar é, nesse sentido, bastante clara. O nacionalismo representado pela torcida pela seleção brasileira de futebol foi habilmente manipulado sob a forma do nacionalismo exacerbado propalado pela ideologia da ditadura, o nacionalismo do “Brasil: ame-o ou deixe-o”, da perseguição aos dissidentes políticos como “subversivos”, da defesa da “segurança nacional” pela perseguição e pela tortura e daí por diante.

Em sentido semelhante, toda a atenção hoje voltada para a próxima Copa do Mundo tem o efeito de obscurecer o debate propriamente político do momento. É como se nada mais importasse além da contagem regressiva para o início do mundial da África do Sul. E é impressionante observar como a convocação dos jogadores para a seleção brasileira é capaz de causar instantaneamente mais comoção do que qualquer dos nossos inúmeros e gravíssimos problemas sociais já causaram. É de causar perplexidade notar que uma expectativa ruim com relação ao desempenho da seleção brasileira na Copa gera muito mais insatisfação do que a miséria, a exclusão social ou a discriminação jamais geraram entre nós.

O fascínio pelo futebol – que, por sua vez, não é gratuito ou casual, mas devidamente construído – torna o público brasileiro, não raro, refém dos interesses da grande mídia na transmissão esportiva e, mais ainda, do jogo político que não hesita servir-se do futebol como instrumento. E não há perspectivas, pelos menos num futuro próximo, de que isto se modifique...

Prova disto é todo o discurso político levantado em função de ser o Brasil a sede da Copa do Mundo subseqüente, em 2014. Tal fato é não só contado como uma espécie de “vitória” política do atual governo como, mais ainda, é apresentado tanto como atestado do “desenvolvimento” pelo qual o Brasil já teria passado nos últimos anos (a ponto de ser hoje “capaz” de sediar uma Copa) quanto como uma propaganda antecipada do “desenvolvimento” que virá até 2014 (pois será necessário investir em infra-estrutura, urbanização, estádios etc.).

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/06/2010.]

domingo, 30 de maio de 2010

[Crítica Social] Judiciário e sociedade

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Sempre que o Supremo Tribunal Federal (STF) toma uma decisão que desagrada ou que, de qualquer modo, surpreende negativamente, invariavelmente aparecem questionamentos sobre seu funcionamento e seu papel perante a sociedade. Questiona-se, em geral, o caráter político das decisões – ora para condená-lo, ora para defendê-lo –, questiona-se a postura ora autoritária e ora submissa ao Executivo do tribunal, questiona-se a conduta de seus ministros etc. Não raro, questiona-se igualmente a estrutura judiciária brasileira como um todo, a morosidade dos processos, o preparo dos juízes etc. Em suma: uma decisão polêmica coloca em dúvida todo o Poder Judiciário brasileiro, pelas mais variadas razões, sempre pelo argumento segundo o qual este “não funciona como deveria”.

Uma questão que usualmente não é proposta, no entanto, é: e se o Judiciário funcionasse “como deveria”? Quero dizer, se o Judiciário brasileiro fosse bem equipado, célere e eficaz, se a Constituição fosse plenamente aplicada (sobretudo no que diz respeito aos seus direitos sociais), se o STF tivesse uma atuação moralmente respeitável e politicamente transparente – enfim, se não fossem os desvios acidentais que acometem o Judiciário, estariam os problemas de fundo resolvidos? Ou, noutras palavras, os problemas que ensejam descontentamento com o Judiciário são problemas apenas do Judiciário ou estão, muito além, também na sociedade cuja organização demanda um Poder Judiciário?

Ora, parece claro que um STF e, de modo geral, um Judiciário que funcionassem exatamente como prevê o modelo, isto é, exatamente como deveriam num “Estado Democrático de Direito”, não trariam mudanças profundas na sociedade mesma. Pois a sociedade que, pela sua própria estrutura, demanda uma forma jurídica e um aparelho burocrático de aplicação do direito como mediador de conflitos, que demanda uma organização política apartada das massas, organização esta que inclui um aparelho judiciário – esta sociedade é, na sua estrutura elementar, a mesma, quer o seu Judiciário funcione “a contento” ou não. A solução, portanto, não pode estar limitada ao Judiciário – é necessário que a sociedade seja transformada, ou melhor, é necessária uma outra sociedade e não simplesmente um outro Judiciário.

Isto não quer dizer, ressalte-se, que o STF não seja mesmo questionável e, sobretudo, que mudanças no Judiciário, especialmente se venham assegurar maior consideração pelas questões sociais, não sejam bem-vindas. Porém, por melhores e mais bem intencionadas que sejam tais mudanças, um “bom” Judiciário pode minorar as grandes mazelas sociais, não pode superá-las. Pode talvez reduzir desigualdades sociais, não pode eliminá-las. Pode estender a efetivação de direitos humanos, não pode extinguir o núcleo desumanizador da sociedade capitalista. Pois o Judiciário não pode ser, na essência, senão um guardião da ordem social estabelecida.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 26/05/2010.]