quinta-feira, 24 de novembro de 2011

[Crítica Social] Moralização e transformação social


MORALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Um pensamento do tipo “o mundo está cheio de mazelas porque as pessoas são moralmente más” conduz imediatamente a uma solução do tipo “a salvação reside numa mudança moral”. Mas idéias deste gênero, embora muito recorrentes, não são exatamente as mais adequadas a uma perspectiva efetivamente crítica. Elas indicam, é certo, algum inconformismo quanto à ordem estabelecida – partem, porém, de premissas equivocadas e, por conta disso, apostam em soluções inócuas.

A moralização de questões sociais – desigualdade, pobreza, exclusão, exploração, violência urbana etc. – desloca tais questões de seu terreno próprio, isto é, retira o caráter propriamente social que lhes é inerente e, assim, torna-se incapaz de enfrentar as suas reais dimensões. A moralização individualiza e transpõe para a vontade e para a consciência aquilo que, na verdade, não depende nem da vontade e nem da consciência.

É na própria estrutura social concreta em que vivemos, nesta estrutura social desigual e excludente, que devemos buscar as causas da desigualdade e da exclusão. É, portanto, a estrutura social, determinada por relações de produção muito específicas, que deve ser transformada para superar, por relações sociais novas, a desigualdade, a exclusão e todas as demais distorções inerentes à sociedade superada.

Quero dizer, a “solução” não reside numa nova moral, mas numa nova sociedade. A “solução” não reside na transformação da moral, dos valores ou da consciência dos indivíduos, mas na ação política, coletiva e organizada, e no processo de transformação efetiva das relações sociais, mais especificamente das relações de produção.

Não se trata, portanto, de perguntar quais as conseqüências das características morais encaradas como “más” para a sociedade, mas antes qual a sociedade que produz, nos indivíduos, tais características morais. Se, nesse sentido, o egoísmo, a falta de solidariedade, o desrespeito à dignidade do próximo etc. são “falhas morais” recorrentes no homem do nosso tempo, é preciso verificar, em primeiro lugar, qual a forma de sociedade que induz tais “falhas”. E certamente não é difícil perceber a sua vinculação a uma sociedade que glorifica o interesse privado e a competição e que, ao mesmo, está edificada sobre um modo de produção que se fundamenta na exploração do trabalho e na desigualdade de classe.

A mudança moral, a despeito de suas eventuais “boas intenções”, arrisca permanentemente perder-se num moralismo sem sentido. Um novo mundo não pode ser criado pura e simplesmente por uma “boa vontade”. Um novo mundo, verdadeiramente novo, só pode nascer da luta.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/11/2011.]

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

[Crítica Social] Universidade e repressão – II


UNIVERSIDADE E REPRESSÃO – II

São como adolescentes mimados que querem fazer o que bem entendem sem limites.

Assim referiu-se um colunista da Folha de São Paulo aos estudantes que, desde a semana passada, ocupavam o prédio da reitoria da Universidade de São Paulo. Assim, com essas poucas palavras, com essa acusação sumária, resumiu o problema. Assim tratou de despir a questão de qualquer aspecto político, de qualquer dimensão propriamente coletiva, de qualquer significado para o debate acadêmico: tudo se explica, pensa o jornalista, por um desvio psicológico, moral, individual dos estudantes.

Providencial que o jornalista tenha publicado a sua coluna apenas algumas horas depois da ação da polícia militar que, pela força, expulsou os estudantes do edifício. Providencial e, diga-se, com certa aparência de “comemoração” pelo ocorrido. Esta “comemoração” que, na verdade, aparece agora em toda a grande mídia – em conjunto, como era de se esperar, com uma verdadeira campanha para denegrir os estudantes que protestavam, para reduzi-los a meros “baderneiros” e, portanto, para insistir no caráter individual, não político, do protesto.

É provável, contudo, que nem mesmo uma palavra seja dedicada por esta mesma grande mídia à questão fundamental: o absurdo da violência, da repressão, da ação armada perpetrada pelo Estado contra um movimento de estudantes. O absurdo, mais ainda, da redução, pelo governo do estado e pela reitoria da universidade, do movimento estudantil a “questão de polícia” – e a completa falta de pudor (típica, aliás, de regimes políticos de ultradireita) em recorrer à força aberta para a “solução” da questão.

Note-se que as notícias inicialmente vinculadas “orgulhosamente” dão conta de uma ação policial que envolveu mais de 400 membros da tropa de choque, devidamente protegidos atrás de seus escudos e armados com cassetetes e escopetas com balas de borracha, além de outros grupos da polícia e de dois helicópteros. Sim, mais de 400 policiais armados e dois helicópteros contra um grupo de estudantes desarmados. A desproporção de forças é mais do que evidente – mas isto nenhum veículo de imprensa parece pretender destacar.

O que se pode observar é um quadro nada animador. Com apoio da imprensa e (o que é pior) com aplauso de grande parte da população, inclusive de grande parte da comunidade uspiana, a universidade tornar-se um espaço sob controle da polícia. Protestos e manifestações dos estudantes são reprimidos pela força, ao máximo. Resta esperar que esses não sejam os primeiros passos numa escalada reacionária para um terror muito maior...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/11/2011.]

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

[Crítica Social] Universidade e repressão


UNIVERSIDADE E REPRESSÃO

Na noite da última quinta-feira fomos obrigados a assistir um espetáculo deprimente na Universidade de São Paulo, um espetáculo de violência absurda e gratuita, resultado de uma ação repressiva perpetrada pela polícia militar contra os estudantes.

O motivo alegado – suposto porte de maconha por três estudantes – definitivamente perdeu qualquer importância. Não há nenhuma proporcionalidade entre tal motivo alegado e a ação da polícia. E nada poderia, de qualquer maneira, justificar a violência indiscriminada contra um grupo inteiro de estudantes – sobretudo se tivermos em vista que esses estudantes estavam desarmados e apenas exerciam uma prerrogativa indiscutivelmente legítima de protestar.

Não há que se falar, nesse sentido, que os policiais agiram apenas em sua própria defesa. A polícia dispunha de toda a “vantagem” fornecida por armas, equipamentos e treinamento, de modo que não esteve verdadeiramente “ameaçada” pela mobilização estudantil em momento algum. Assim, toda a discussão a respeito de “quem começou” a agressão, além de assumir contornos descabidamente infantis, também perde o seu sentido: ainda que tenham sido os estudantes, a resposta da polícia jamais poderia ter sido tão desmedida e tão arbitrária.

Mais ainda, não há que se falar que a ação da polícia limitou-se a restabelecer a “ordem”. Porque havia perfeita “ordem” na USP antes da ação da polícia. Se houve “desordem”, esta foi causada precisamente pela violência policial. A ação da polícia foi, portanto, não a solução, mas a verdadeira causa do problema.

O que, de um modo geral, este espetáculo deprimente revela é muito significativo. Não se trata de um episódio meramente acidental – nem é, no fim das contas, a primeira vez que algo do tipo ocorre na USP nos últimos tempos. Trata-se, na verdade, de mais uma demonstração do modo pelo qual o governo paulista vem, já há vários anos, encarando o ensino superior público estadual.

Tentativas sucessivas de privatização, sucateamento de cursos mais distantes das perspectivas mercantis, redução da pesquisa a dimensões puramente quantitativas e produtivistas, completa abdicação ao ideal de universidade como geradora de conhecimento e crítica. Este “projeto”, que agora encontra apoio irrestrito na reitoria da universidade, está combinado com uma diretriz política clara no que diz respeito ao movimento estudantil: a completa redução deste a “questão de polícia”. Não por acaso assistimos, também na USP, em 2009, a uma batalha entre tropa de choque e estudantes. Não por acaso o atual reitor foi escolhido, no ano passado, burlando o procedimento estabelecido, entre os prediletos do partido que há anos ocupa o governo estadual. Não por acaso assistimos, nos últimos meses, à completa ocupação do campus pela polícia. O futuro traçado pelas “autoridades competentes” para a Universidade de São Paulo há de ser construído, ao que parece, sob o impacto de cassetetes e sob o estrondo de balas de borracha.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/11/2011.]

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

[Crítica Social] “Direito do mais forte”


“DIREITO DO MAIS FORTE”

“Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte também é um direito, e que o direito do mais subsiste sob outra forma em seu ‘estado de direito’.”
– K. Marx, Introdução [de 1857]

Os ideólogos da sociedade presente não cansam de exaltar, hoje como em 1857, o Estado de Direito e as suas supostas virtudes. Uma sociedade do governo das leis, perante as quais todos são iguais. Uma sociedade livre do arbítrio, em que os homens não se submetem senão à lei. Uma sociedade em que esta igualdade e esta liberdade jurídicas são garantidas pela segurança do aparelho de Estado, imparcial promotor do bem comum. Isto é o que nos dizem...

Mas esta sociedade, “éden dos direitos do homem”, é também o paraíso da produção capitalista. A igualdade, a liberdade, a segurança traduzem juridicamente as exigências supremas da circulação universalizada de mercadorias, são imediatamente determinadas pela circulação universalizada de mercadorias. Expressam, portanto, também a peculiar operação de circulação mercantil dada entre força de trabalho e salário – que não aparece aqui senão como contrato, como pacto voluntário entre sujeitos de direito formalmente iguais, com a garantia estatal contra qualquer extrapolação por qualquer da partes.

Esta peculiar relação de troca de mercadorias – que, como toda troca de mercadorias, é marcada pela equivalência entre as mercadorias, em termos de valor, e igualdade entre os sujeitos, em termos jurídicos – é, no entanto, a forma necessária das relações capitalistas de produção. E, na esfera da produção, já não há que se falar ingenuamente em “direitos do homem”, em igualdade jurídica: há que se falar em desigualdade de classe, em extração de mais-valia, em exploração.

A desigualdade da produção capitalista não se realiza senão através da igualdade do direito.  O Estado de Direito, os direitos fundamentais dos homens, a igualdade e a liberdade jurídicas são a condição para a suprema desigualdade inerente à sociedade capitalista, a desigualdade engendrada inexoravelmente pela sua estrutura produtiva.

O Estado de Direito não é, portanto, ao menos num sentido, o “contrário” do direito do mais forte...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 26/10/2011.]

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

[Crítica Social] Causas e conseqüências


CAUSAS E CONSEQÜÊNCIAS

Ninguém pode razoavelmente pretender resolver um problema senão agindo contra as suas causas. – Isto é nada mais, nada menos que o óbvio. No entanto, repetir o óbvio é, às vezes, necessário: porque, às vezes, até o óbvio é completamente esquecido, negligenciado ou soterrado pelos mais diversos tipos de distorção e mistificação.

Assim, quando tratamos dos “problemas” da economia capitalista, uma “solução” só pode ser efetiva se buscar, pelas raízes, agir sobre as causas. Tais causas, é claro, estão na própria estrutura social determinada pelas relações capitalistas de produção, isto é, nas profundezas desta forma social específica determinada por seu específico modo de produção.

Nesse sentido, se a crise econômica se manifesta no setor financeiro, isto não quer dizer que se trata de uma crise do setor financeiro. Uma gripe pode muito bem manifestar-se no espirro, mas é muito mais do que o espirro: apenas um entendimento muito precário poderia tomar o espirro como a própria gripe. Deste ponto de vista, quando se aponta o “excesso de ganância” dos operadores de finanças ou o “descontrole” da especulação como “causa” da crise, não se vai além da mais absoluta superfície. A crise tem suas verdadeiras causas na produção capitalista, é mais uma das crises cíclicas do modo de produção capitalista: só pode ser “solucionada” – em sentido igualmente radical – pela transformação dessas relações de produção.

Do mesmo modo, quando as convulsões do capitalismo contemporâneo aparecem com maior intensidade em certos países, como hoje acontece em Portugal ou na Grécia, isto de modo algum significa que sejam questões tão-somente locais e isoladas. Quando, como “causas” para tais acontecimentos, apontam-se os “excessos” dos gastos sociais do Estado, mais uma vez não se o ultrapassa a superfície. Pois o corte de gastos sociais não pode senão garantir um alívio momentâneo para os capitais, mas não “soluciona” nada: na exata medida em que permite a sobrevida do mesmo modelo econômico, apenas posterga convulsões futuras.

Ora, os “problemas” da economia capitalista são “problemas” da economia capitalista. Ainda que se manifestem em setores isolados, ainda que apareçam com mais evidência em lugares específicos, são questões estruturais. A tentativa de apresentá-los como isolados ou, de modo geral, de limitar-lhes a extensão tem como interesse imediato a mistificadora insistência na possibilidade de um capitalismo harmônico, perfectível, potencialmente livre de crises. É fruto da recusa obstinada a buscar as verdadeiras causas: porque as verdadeiras causas estão no próprio capitalismo e, portanto, apenas a sua superação pode ser encarada como solução autêntica.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/10/2011.]

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

[Crítica Social] De volta à produção


DE VOLTA À PRODUÇÃO

Muito se discute hoje, sobretudo em vista das questões ambientais e da crise econômica que se prolonga desde 2008, a respeito do consumo e das finanças. Assim, de um lado, ambientalistas e adeptos da gestão responsável, do consumo consciente ou de qualquer ideal do gênero propõem mudanças contingenciais na esfera do consumo como meio de “redenção”. De outro lado, economistas debatem índices, cotações, variações cambiais, enfim, números, como se tais números tivessem realidade independente, como se gerassem a si próprios – e são assim forçados a “explicar” tudo que há de incongruente com os números com base na “imoralidade”, no “excesso de ganância” ou “desvios” do gênero.

O que praticamente todos aqui negligenciam, consciente ou inconscientemente, é a esfera da produção. E ao fazê-lo, o que se negligencia não é nada menos do que a esfera determinante da economia como um todo. O que se negligencia é o evidente fato de que não se pode consumir senão o que é produzido. O que se negligencia é o evidente fato de que só pode haver finanças numa economia em que, antes de tudo mais, produz-se.

Desse modo, todas as propostas de transformação das relações de consumo, especialmente os apelos à limitação do consumo pela consciência, condenam-se por conta própria, exatamente pela incapacidade de ir além do consumo, à inocuidade. Pois o problema fundamental – e é isto que se ignora – não está no consumo, mas na produção: é a estrutura produtiva do capitalismo, inexoravelmente voltada à multiplicação contínua do capital, que não pode existir senão como devoradora insaciável do meio ambiente. Consumir conscientemente, consumir seletivamente ou reciclar o lixo, na medida em que não alteram a essência da estrutura produtiva, são medidas não mais do que paliativas, capazes, na melhor das hipóteses, de atrasar o colapso em alguns instantes.

No mesmo sentido, a aparente automultiplicação das finanças só pode ser imaginada ao desconectar-se o que não pode ser desconectado. A multiplicação do capital pode ocorrer apenas pela exploração do trabalho, o que significa que pode ocorrer apenas na produção. Assim, toda a variação das finanças não se deve, em última instância, às próprias finanças. Mesmo a sua aparente autonomia só pode ser proposta em vista da dependência crescente do capital produtivo ao capital financeiro, mas de qualquer modo em vista da relação das finanças com a produção. Portanto a crise da economia capitalista só pode ser entendida como crise financeira por um olhar muito parcial: as raízes da crise só podem ser verdadeiramente encontradas nas relações de produção.

Em suma, apenas uma transformação da estrutura produtiva pode pôr fim à completa desmedida na exploração dos recursos ambientais. E, claro, apenas uma transformação das relações de produção capitalistas podem pôr fim à crise da produção capitalista. Voltar à produção é, de qualquer modo, indispensável.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 12/10/2011.]

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

[Crítica Social] Luta de classes, sim


LUTA DE CLASSES, SIM

Por que é tão necessário declarar extinta a luta de classes? Por que é tão imprescindível repetir, antes mesmo que qualquer debate sério a respeito (re)comece, que se trata de uma velharia, “paradigma” superado, algo “fora de moda”. Por que é tão urgente insistir no seu fim, na sua morte, na sua superação, especialmente quando os primeiros indícios de fumaça aparecem no horizonte?

Se a luta de classes acabou, o que os entusiastas do “novo” mundo do fim do séc. XX e início do séc. XXI pretendem colocar em seu lugar: uma sociedade harmônica, sem classes, da solidariedade? Ou a simples vitória definitiva – o “fim da história” – de uma classe sobre a outra?

Ora, a sociedade capitalista não é – e não pode ser – uma sociedade harmônica: a sua estrutura produtiva opõe necessariamente uma minoria de detentores do capital e uma maioria de despossuídos cuja única alternativa é viver do próprio trabalho. Pelo mesmo motivo, também não pode ser senão o campo de uma luta permanente: o domínio contínuo de uma classe nunca será vitória definitiva, porque a “vida” da sua estrutura econômica é a oposição, porque o seu movimento é a própria contradição.

A luta de classes é inerente à sociedade capitalista e está, na verdade, muito longe de acabar. A pressa e a urgência da classe dominante em declarar o seu fim é o mais evidente sintoma disto. O incremento visível desta pressa e desta urgência no momento em que o capitalismo enfrenta mais uma de suas crises é a demonstração cabal da plena vitalidade desta contradição fundamental.

Se as fábricas do mundo capitalista globalizado deslocaram-se para a China e o movimento político dos trabalhadores perdeu força por conta da queda do Muro de Berlim e dos processos de integração pelo consumo, isto não significa que a luta de classes tenha desaparecido ou se esfumaçado. Quando protestos tomam as ruas da Europa em crise e manifestantes propõem ocupar Wall Street contra o “mercado financeiro”, quando grupos abertamente conservadores começam as mostrar as caras e exigir um lugar em cena, é certo que não se fala de outra coisa senão luta de classes. Quando se trata de movimentos ambientais, de minorias, de excluídos, é certo que não se fala de outra coisa – ainda que os próprios movimentos não o saibam – senão de luta de classes. A luta de classes perpassa todas as grandes questões sociais do presente, manifesta-se em vários fronts, tem muitas demandas e muitas vozes: o imperativo dos nossos dias é conectar novamente essas múltiplas lutas, no que lhes há de comum, e dirigi-las contra o alvo exato.

Pois o espectro que, mais de 150 anos atrás, rondava a Europa não foi exorcizado – e agora não ronda apenas a Europa, mas o mundo. Este espectro, concorde ou não com isto a classe dominante, não deixará de causar calafrios à segurança da ordem estabelecida, não deixará de assombrar a solidez deste mundo, ao menos enquanto este mundo perdurar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/10/2011.]

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

[Crítica Social] Novela, propaganda e mundo real


NOVELA, PROPAGANDA E MUNDO REAL

A novela repleta de personagens endinheirados e felizes, que vivem em mansões como se isto fosse absolutamente usual, que não têm horário de trabalho e nada mais com que se preocupar senão o par romântico e as “maldades” do vilão que tenta separá-los. A propaganda que massacra a todos indistintamente com o imperativo do consumo, que repete sem piedade que não há inclusão sem consumo, que não há felicidade sem consumo, que não há humanidade sem consumo. E o mundo real, duro e inescapável: uma sociedade desigual e, no geral, pobre – sociedade em que ninguém, exceto uma pequeníssima minoria, pode viver uma vida de protagonista de novela e em que têm sorte aqueles que podem consumir o mínimo necessário à sobrevivência.

Maquiado para esconder “imperfeições” e saturado com cores e luzes que não possui, naturalizando situações que de modo algum são naturais e escondendo o que há de pior e mais arbitrário na sociedade presente, o mundo da novela e da propaganda é inverdade como tal, distorção escancarada, mentira deliberada. O mundo da novela e da propaganda, o mundo tal como apresentado pela grande mídia, é, para dizer o mínimo, um delírio – mas um delírio cuja repercussão não pode ser ignorada.

Para a classe trabalhadora, em relação à qual a novela e a propaganda não contêm nenhuma verdade, o delírio televisionado é ao mesmo tempo fuga da dura realidade. A glorificação da mercadoria pela propaganda alimenta um devaneio impotente de ascensão social – que, na verdade, contribui apenas para a exata manutenção da estratificação social presente, na medida em que o consumismo que desencadeia não é senão seu combustível. E o sofrimento amoroso da personagem principal, na narrativa ruim e previsível da novela, é pura e simplesmente amenidade frente à estafa do trabalho degradante e à pobreza sem perspectivas.

Para as assim chamadas classes médias e altas, no entanto, o delírio da novela e da propaganda atende perfeitamente a um desejo, em geral inconsciente, de desconhecer a realidade social. Pois a vontade de acreditar na própria condição social como “normal”, desconsiderando a profunda desigualdade que a torna possível, desconsiderando que a imensa maioria da população não tem acesso ao mesmo padrão de vida e de consumo, encontra seu mais puro reflexo na mentira deliberada que a grande mídia repete sem cessar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 28/09/2011.]

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

[Crítica Social] “Liberdade versus igualdade”?


“LIBERDADE VERSUS IGUALDADE”?

Explicar a história contemporânea como uma luta entre liberdade e igualdade, entre uma liberdade que desiguala e uma igualdade que oprime: haverá ainda neste mundo um ponto de vista menos adequado que este? Haverá ainda alguma forma mais eficaz de não compreender a história?

É possível, não há dúvida, pensar a história de muitas maneiras: pensar a história como uma luta entre idéias é, no entanto, a maneira mais superficial e mistificadora de fazê-lo. As idéias não caem diretamente do céu sobre as cabeças de alguns “iluminados” que as difundem na terra, mas têm suas raízes firmemente fundadas numa sociedade determinada, num conjunto de relações de produção determinado, em vista de interesses políticos determinados. É muito mais razoável dizer que as idéias nascem da história do que o inverso. São homens concretos, por sua ação, dentro dos limites e possibilidades fixados pela estrutura social e econômica de cada tempo, que movem a história. Afirmar que as idéias o fazem, pura e simplesmente, seria o mesmo que afirmar que a realidade nasce do puro pensamento – como se da imaginação prodigiosa de uma criança o arco-íris pudesse passar realmente a conduzir a um tesouro ou como se o armário pudesse passar realmente a esconder um monstro.

No mais, é no mínimo que curioso que as duas idéias em suposto confronto sejam precisamente a liberdade e a igualdade. Os velhos ideais da Revolução Francesa, como revolução burguesa por excelência, não apareceram naquele momento da história por puro acaso: traduziam exigências inadiáveis em vista da ascensão definitiva do capitalismo. Pois “igualdade” não significa aqui senão equivalência formal perante o direito, universalização da igual capacidade de portar direitos – isto é, a igualdade jurídica que se fundamenta na troca de mercadorias e que se apresenta como condição para toda a desigualdade de classe intrínseca ao capitalismo. E “liberdade”, por sua vez, não significa senão a liberdade para dispor da propriedade, a liberdade para a troca de mercadorias, isto que também se chama de “autonomia privada” e que inclui, para cada um dos sujeitos tornados iguais perante o direito, a possibilidade de dispor de si mesmo como mercadoria – de vender-se como se fosse uma coisa, como força de trabalho posta à mercê do capital, condição para multiplicação permanente deste.

A suposta “luta” entre liberdade e igualdade não pode ter, portanto, outro “cenário” senão o capitalismo, só pode ser uma “luta” interna à sociedade do capital. Por isso uma história movida pelo confronto entre liberdade e igualdade só pode ser uma história que não se move para além de limites muito claros: os limites da produção capitalista. Assim, uma “leitura” da história que pretende apresentá-la como “luta” entre tais idéias não apenas repete um idealismo ingênuo: o idealismo é só um disfarce “civilizador” para uma estreitíssima posição conservadora que, ao que parece – e com razão –, tem vergonha de se apresentar como o que de fato é.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/09/2011.]

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

[Crítica Social] Privilégio e direito


PRIVILÉGIO E DIREITO

Ao que parece, o debate sobre o caráter dos assim chamados “direitos de minorias” não está inteiramente superado. Há quem ainda defenda que são “privilégios” e que, nesta condição, nenhum grupo deveria ser “agraciado” de tal maneira: nenhuma minoria deveria ter um direito “especial”, uma proteção específica ou algo semelhante, porque esta minoria passaria então a gozar de “mais” direitos do que todos mais.

É necessário questionar, a esse respeito, se os “direitos de minorias” constituem efetivamente uma desigualação ou se, ao contrário, buscam a restituir uma igualdade jurídica que se encontra originalmente violada.

Quando, por exemplo, verifica-se que a ordem jurídica brasileira, por meio da lei 7716/89, considera crime a discriminação por “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, mas não leva em consideração a discriminação por “orientação sexual”, como justificar uma tal desigualdade? Nesse sentido, a criminalização da homofobia pode ser considerada atribuição de “privilégio” a uma minoria ou, pelo contrário, não é senão a extirpação de uma desigualdade até agora perpetuada através do direito?

Ou ainda, quando se verifica a enorme desproporção entre a parcela afro-descendente da população brasileira e parcela afro-descendente da população universitária brasileira, sobretudo no que diz respeito às universidades públicas, algo parece profundamente desigual. Assim, mecanismos de ação afirmativa, como os sistemas de cotas raciais, de fato representam “mais direitos” para este grupo social ou apenas uma tentativa de correção de uma desigualdade já profundamente arraigada?

Essas lutas, como tantas mais das tantas “minorias” que conhecemos, no fundo não são mais do que lutas pela realização do direito que já existe. Embora difíceis e importantes, não são lutas pela transformação radical da sociedade presente, não são revolucionárias no sentido autêntico do termo, não exigem senão aquilo que o direito presente já contém: o princípio da igualdade jurídica.

Não são, portanto, “causas impossíveis”, são, com certeza, difíceis, mas perfeitamente possíveis. Por isso mesmo, para os horizontes políticos da esquerda não podem ser mais que pequenas conquistas – se é que serão conquistas –, porque não vão além das possibilidades já dadas aqui e agora. A igualdade (meramente) jurídica é uma determinação do capital e a sua incompletude é, na sociedade do capital, um “desvio”. Se, ainda assim, são lutas árduas, se há ainda grande resistência, é sinal de quão pouco aberta esta sociedade é – e de quanta força dispõem as perspectivas políticas mais conservadoras, preconceituosas, irracionais.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 14/09/2011.]

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

[Crítica Social] Imprensa e política

IMPRENSA E POLÍTICA

Bastou a alusão, num congresso interno do Partido dos Trabalhadores, à necessidade de responsabilizar a imprensa “toda vez que falsear os fatos ou distorcer as informações para caluniar, injuriar ou difamar” e a conseqüente defesa da elaboração de uma lei que regule e “democratize” o setor para parte considerável da grande mídia, em reação, lançar, voraz e raivosamente como sempre, o velho discurso do controle político da imprensa, da censura etc. É o mesmo debate, tantas vezes requentado, com os mesmos argumentos exaustivamente repetidos, já ensejado por algumas várias ocasiões ao longo dos últimos anos.
 
A pergunta, fundamental ao que parece, que os veículos de comunicação não expõem, porque definitivamente não lhes interessa, é: por que a grande mídia tanto repudia e tanto teme a regulação de suas atividades?
 
Ora, quando os jornais reclamam a ameaça da censura, o apelo imediatamente remete aos momentos mais terríveis da ditadura militar e à sua intervenção direta e truculenta no conteúdo dos noticiários. Mas é sem sentido identificar toda e qualquer proposta de controle da imprensa com a censura. Todas as grandes atividades econômicas têm algum tipo de regulamentação, todos os indivíduos e todas as corporações são juridicamente responsáveis por seus atos: por que a imprensa deveria gozar do privilégio da absoluta ilimitação e da irresponsabilidade? É evidente que a grande mídia deve ser responsável pelo conteúdo do que noticia – e isto não é uma forma de controle arbitrário do que pode ou não ser noticiado, é uma forma (insuficiente, diga-se) de coibir o arbítrio da própria imprensa na construção tortuosa e interessada da “verdade”.
 
No mais, quando se fala em controle político da imprensa, insinua-se cinicamente que tal controle já não aconteça. Os veículos de imprensa são majoritariamente dominados por grandes corporações – que, como em todos os outros setores, têm como interesse essencial o lucro. A notícia, o relato, a “verdade” não são constituem o real objeto da grande mídia, não são senão os meios pelos quais a grande mídia obtém lucro. Toda notícia difundida passa, assim, antes de tudo mais, pelo “filtro” do economicamente interessante – e o interesse econômico, no caso, é aquele das próprias corporações midiáticas. E este “filtro” está ligado a muitos fatores: pressões da concorrência, interesse na perpetuação da ordem econômica vigente, a classe social a que pertencem os detentores do capital dessas corporações, os anseios políticos desta classe social etc.
 
A queixa da grande mídia é, no fundo, reposição da queixa dos capitais quanto a qualquer obstáculo à sua livre movimentação, sempre em busca da multiplicação mais intensa, sem pudor e sem escrúpulos. A solução definitiva para que a informação venha a cumprir efetivamente o seu papel só poderia ser, por isso, a retirada dos veículos de comunicação em massa das mãos do capital: enquanto isto não é possível, a regulamentação do setor é o mínimo que se pode esperar.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/09/2011.]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

[Crítica Social] Sobre “ser bem atendido”

SOBRE “SER BEM ATENDIDO”

A classe média brasileira parece ter uma obsessão por ser “bem atendida”. Parece ter especial apreço por exigir do garçom, do vendedor, do funcionário em geral que lhe preste o “melhor” atendimento, prestativa e cortesmente. Parece ter especial apreço por exigir sempre mais atenção, educação, boa vontade – mas nem sempre por fazê-lo de modo educado, às vezes sequer decente.
 
O que, no entanto, significa este “ser bem atendido”? Ora, não se trata simplesmente de descortesmente receber cortesia. Não é por acaso, com certeza, que este anseio se volta contra aqueles que, do ponto de vista do mais abjeto esnobismo, estão num “nível social” inferior ao do freguês. O que este freguês deseja não é senão ser “bem servido”, receber o melhor tratamento daqueles que, aos seus olhos, existem apenas para servir-lhe – por isso não hesita exigir reverência e adulação daqueles que encara como seus “serviçais”.
 
A obsessão pelo “bom atendimento” é apenas mais um reflexo de um elitismo absurdo tão enraizado entre nós. Talvez como uma reminiscência de tempos senhoriais ou aristocráticos, talvez simples fruto de doentia necessidade de glorificar a si mesmo através do desprezo pelo outro, este “ser bem atendido” significa reduzir o atendente a capacho e reclamar a prerrogativa estúpida – porém profundamente relacionada a uma sociedade sumamente desigual – de ser servido como o nobre por plebeus, como o senhor por seus escravos, como alguém de “sangue azul” por “meros mortais”.
 
Assim, o que importa ao freguês que maltrata o garçom para exigir ser bem tratado é, no fundo, colocar-se como superior, como se afirmasse por sua ação algo como “eu sou melhor do que você”. O que importa ao cliente que humilha o vendedor é alimentar a patologia de sua própria psiquê que, no delírio egoístico da superioridade, não pode passar sem a humilhação do outro. O que há por detrás destas desprezíveis atitudes é a convicção de que realmente há “superiores” e “inferiores” – ou, o que é mais freqüente, uma necessidade de auto-afirmação, uma necessidade de convencer a si mesmo da “superioridade” própria e da “inferioridade” alheia.
 
O único resultado disto é um reforço perverso de uma estrutura social já suficientemente degradante, uma estrutura social que não pode senão separar homens em “degraus” econômicos: sempre uma minoria no topo, sempre uma maioria na base.
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 31/08/2011.]

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

[Crítica Social] “Be happy”

“BE HAPPY”

Deixar de preocupar-se com o “ter” – com o trabalho, com a conta bancária, com os “bens materiais” etc. – para colocar todas as atenções em “ser” – em “ser feliz”, sobretudo. Isto, sem dúvida, faz lembrar uma famosa música do final da década de 1980 – “Don’t worry, be happy” –, mas incrivelmente é algo que se leva a sério, em alguns casos muito a sério: há quem pense que se trata da solução para grandes mazelas contemporâneas da vida de cada um de nós.

Do ponto de vista de alguém que pudesse viver fora deste mundo, estaria aí dada mesmo uma excelente idéia: despreocupar-se de tudo, deixar tudo que é desagradável de lado e, finalmente, ser feliz. Mas ninguém pode viver fora deste mundo, portanto deixar de preocupar-se com as necessidades materiais mais básicas não pode ser uma questão de mera escolha, uma questão individual, mas algo que só se pode compreender socialmente.

Para a esmagadora maioria da população que sobrevive do próprio trabalho e que “tem” apenas o suficiente para sobreviver, ou ainda menos do que isso, a “infelicidade” de preocupar-se, enquanto a “felicidade” torna-se cada vez mais distante, é inescapável. No fim das contas, só quem pode se dar ao luxo de não se preocupar, de escolher viver a vida sem tais tormentos, é a ínfima minoria que dispõe de muito mais do que o suficiente, que já tem a vida ganha independentemente de qualquer sacrifício dos próprios ossos, músculos e nervos.

Mais ainda, a relação entre esta maioria que é constrangida a fazer as contas para saber se o salário será suficiente para o mês (e isto ainda se tiver salário) e esta minoria que dispõe do privilégio de “não se preocupar e ser feliz” não é casual. A estrutura produtiva sobre a qual a sociedade presente está erigida não permite outro arranjo: uma maioria de despossuídos precisa ser explorada para a multiplicação contínua do capital, da qual se beneficia uma minoria. É, portanto, esta mesma estrutura produtiva, que já distribui de maneira sumamente desigual os produtos do trabalho humano, que distribui de maneira também desigual o “privilégio” da “felicidade”. A incapacidade compreender isto ou o anseio deliberado por esconder esta realidade são os dois únicos meios pelos quais se torna possível levar a sério o “be happy” e seu discurso vazio.

Assim, esta propaganda da “felicidade” como uma opção de vida, resultado de mera escolha e esforço individuais, é não apenas uma idéia equívoca, porque desconectada a realidade em que aparece, mas também perversa. Ao supor que todos dispõem equitativamente do privilégio assegurado apenas a uns poucos, propagandeia à maioria que a sua infelicidade é produto de suas escolhas erradas ou de sua falta de empenho – quando, na verdade, é uma imposição social que o indivíduo, por sua simples vontade, não pode superar. Propagandeia mentirosamente a possibilidade universal de uma “vida feliz” que, na verdade, neste mundo de desgraça e miséria, só pode existir para muito poucos.
 
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/08/2011.]

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

[Crítica Social] A lei e o reformismo

A LEI E O REFORMISMO

Modificar uma casa, um pouco de cada vez, até que ela se torne um avião – e isto através da edição de leis. É em parte esta – ironia à parte – a esperança fundamental de quem propõe transformar o mundo através do direito. É esta a aposta por trás dos ideais de construção de uma sociedade “mais justa”, “mais solidária” ou “mais humana” através de um direito melhor do que o direito atualmente existente.
 
Há aqui pelo menos três grandes problemas a destacar. Em primeiro lugar, persiste uma velha crença do jurista, muito difundida e objeto de pouquíssima reflexão, segundo a qual o direito contém em si a potência de transformar quaisquer relações sociais. Tanto assim que a resposta padrão do jurista para qualquer novo problema é quase sempre a mesma: é preciso editar uma nova lei.
 
Em segundo lugar, persiste igualmente uma visão muito superficial do direito, visão que o retira por completo da história e, por conseqüência, pretende ser possível encontrar o direito em qualquer formação social, do passado, presente ou futuro. O direito poderia assim servir de “instrumento” para a manutenção de qualquer sociedade, bem como (uma vez modificado para tanto) para a transição a qualquer outra. Escapa aqui essencialmente a determinação histórica específica do direito: o seu vínculo indissolúvel com uma formação social determinada, aquela correspondente ao modo capitalista de produção.
 
Em terceiro lugar, o fundamento de todo reformismo reside numa concepção parcial e, por isso mesmo, precária da sociedade e de suas transformações. Uma sociedade nova há, sem dúvida, de nascer de dentro de uma sociedade velha, mas disso não se pode concluir que a modificação marginal e gradual de uma sociedade velha dará origem a uma nova. Uma transformação social efetiva só pode ocorrer pela ruptura radical, pela modificação das estruturas mais profundas. Melhorar as poucos uma sociedade velha resultará apenas numa sociedade velha melhorada: uma nova sociedade só pode nascer de um processo revolucionário.
 
Num tal processo, o direito é muito mais obstáculo do que instrumento de transformação. Se uma transformação social efetiva só pode ocorrer através da ruptura e da dissolução do velho, então só se pode concluir que também este elemento da sociedade velha, o direito, deve ser superado. Como parte do passado, o direito também deve ser dissolvido para que o futuro – isto é, o novo – possa tomar o seu lugar.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 17/08/2011.]

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

[Crítica Social] Sobre o “dia do orgulho heterossexual”

SOBRE O “DIA DO ORGULHO HETEROSSEXUAL”

[...] conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes.” Eis o que, segundo um dos artigos do projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo na última semana, constitui o objetivo da instituição de um “dia do orgulho heterossexual”. Isto, por si só, deveria dispensar qualquer comentário – porque comentar o absurdo completo parece sempre um enorme desperdício de tempo e esforço –, mas, ao que parece, esta peça da mais absoluta falta de sentido parece fazer ainda sentido para parte significativa dos nossos representantes políticos...
 
Se o “orgulho heterossexual” – que, é evidente, só faz sentido em oposição ao seu “inverso”, o orgulho homossexual – visa estimular “a moral e os bons costumes”, então a homossexualidade, por este distorcido ponto de vista, implica imoralidade e constitui um “mau costume”, um costume abjeto. Ora, o “dia do orgulho heterossexual” então traz em si imediatamente uma carga inaceitável de preconceito.
 
No plano jurídico, mesmo a ponderação técnica mais primária não pode concluir, a não ser que apele a argumentos muito falaciosos, senão pela completa inadmissibilidade da introdução de um tal preconceito por meio de uma norma jurídica. A igualdade jurídica e mais uma dúzia de outros princípios fundamentais foram vilipendiados. A dignidade humana de todos os que não partilham o “orgulho heterossexual”, taxados pelo texto normativo de imorais, foi atacada de forma insustentável: a norma introduz uma distinção de status juridicamente absurda.
 
Mas o aspecto jurídico definitivamente não é o mais importante. O “dia do orgulho heterossexual” tem um significado hediondo para muito além da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade. Trata-se de uma resposta clara e direta de setores políticos abertamente conservadores contra os pequenos progressos lenta e arduamente conquistados pelos homossexuais ao longo dos últimos anos. Uma resposta moralista e retrógrada que insiste, conseqüente ou inconseqüentemente, em incentivar a brutalidade e a estupidez da homofobia e que se opõe de modo frontal mesmo aos passos mais iniciais no reconhecimento jurídico e, sobretudo, social dos homossexuais.
 
É quase sem sentido, no fim das contas, falar em “orgulho heterossexual” numa sociedade em que a discriminação contra os homossexuais é ainda tão forte, em que a minoria ainda tem que lutar pelo mínimo. É a paranóia da “maioria perseguida” que, diante do menor ensaio – ainda francamente insuficiente, ressalte-se – de integração da homossexualidade, reage odiosamente pela manutenção da discriminação, pela manutenção da exclusão (inclusive por meio do direito) – em suma, pela manutenção da velha sociedade da “moral” e dos “bons costumes” em que não há lugar senão para os dominantes.
 
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/08/2011.]

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

[Crítica Social] Luz e trevas

LUZ E TREVAS

Enquanto o mundo todo parece preocupado com problemas como a reciclagem e a sustentabilidade, a proibição do fumo em lugares abertos ou fechados, o bullying ou qualquer outra grande sensação instantânea e “urgentíssima”, as questões políticas mais básicas e potencialmente perigosas continuam intocadas. A discriminação de classe, o ódio racial, a intolerância religiosa e tudo mais que insufla as tendências mais violentas de extrema direita, tudo aquilo que já alimentou experiências totalitárias no século passado, continua a se mover nas sombras das “maravilhosas” democracias do ocidente e do discurso “politicamente correto” oficial e inescapável.

O que ocorreu na Noruega dias atrás é uma evidente demonstração disto. É claro que, neste caso, certos fatores psicológicos e individuais não podem ser negligenciados, mas a sobrevivência dos ideais reacionários mais extremados, dispostos aos mais insensatos atos de violência aberta, há de ser tomada com preocupação.

Não é por acaso, com toda a certeza, que o tal “documento” de mais de 1000 páginas disseminado pelo atirador recebeu declarações de apoio de vários grupos europeus de ultradireita. Nem é por acaso que esses mesmos grupos têm, nos últimos anos, conquistado cada vez mais terreno nas disputas eleitorais daquele continente.

Notável, no mais, que, além de uma intolerância extremada contra o islamismo, os ataques tenham sido motivados por oposição a uma esquerda não mais do que moderada. A despeito do apelo declarado como “antimarxista”, foi como resistência ao predomínio de um partido social-democrata que os ataques ocorreram. Foi, portanto, também um ato de intolerância política extremada.

Uma tal intolerância se volta contra conquistas sociais mínimas, quero dizer, um mínimo de “bem-estar social” proporcionado por uma atuação estatal ainda superficial. Volta-se contra a previdência social, a saúde pública, a garantia de salários minimamente adequados, enfim, contra os direitos sociais que mesmo a esquerda um pouco mais firme considera sumamente insuficientes. Contra o placebo, o paliativo que sequer atinge o núcleo da sociedade capitalista – pois mesmo isto é, do ponto de vista desta ultradireita, uma ameaça.

Se mesmo com um “progresso” social mínimo, quero dizer, com um mínimo de redução de desigualdades sociais e prestação de serviços públicos pelo Estado, esta ultradireita não está disposta a concordar, o que esperar dela? Se mesmo este mínimo serve de pretexto para tamanha violência, que resistência se deve esperar para qualquer tentativa mais radical de transformação social? O episódio da Noruega obriga com horror a lembrar aquilo que, afinal, não deve nunca ser esquecido: as forças conservadoras mais odiosas e sanguinárias continuam acordas nas trevas e continuam dispostas a tudo para impedir qualquer avanço desta sociedade em que vivemos.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 03/08/2011.]

quinta-feira, 28 de julho de 2011

[Crítica Social] Harry Potter e a decadência da fantasia

HARRY POTTER E A DECADÊNCIA DA FANTASIA

Como gêneros literários, a fantasia e a ficção científica têm, a despeito das diversas conotações políticas que encerram, um significa preciso na crítica da sociedade presente. Na medida em que apresentam um “outro mundo”, em que transpõem a narrativa para uma realidade paralela, recolocam aquilo que a realidade presente tende a negar peremptoriamente: a própria possibilidade da alternativa. Recolocam, para melhor ou para pior, o questionamento do presente: Por que a realidade é esta se pode ser outra? Por que aceitar a realidade presente se ela pode ser mudada?
 
Claro que, como alternativa, a fantasia necessariamente fracassa – e duplamente. Primeiro, porque não pode propor outra realidade a partir da pura imaginação, mas apenas como negativo, como espelho distorcido do presente. Segundo, porque, na exata medida em que apresenta uma outra realidade como fantástica, no fundo confirma o caráter inescapável da realidade dada: a única “fuga” possível seria o sonho ou o delírio. De todo modo, a fantasia ao menos semeia a dúvida – ainda que só para negá-la em seguida e para recolher-se docilmente à impotência.
 
É por isso que uma literatura tão abertamente conservadora como a de Tolkien ou um blockbuster tão descaradamente comercial como os filmes de “Star Wars” continuam interessantes. As narrativas passadas na Terra-Média ou “há muito tempo, numa galáxia muito distante” trazem consigo ao menos uma semente débil de dúvida. E, através da dúvida, o que não é senão pura mentira aponta, ao menos por um instante, para uma suprema verdade: o real pode não sê-lo.
 
O caso parece ser, no entanto, um pouco diferente com a longa série de histórias de Harry Potter. A narrativa abdica mesmo de tirar o leitor-espectador do lugar, de levá-lo para além da capitulação ante o real: Hogwarts não é – não pretende e não pode ser – um outro mundo, é apenas um recorte precário dentro do mundo presente. É apenas uma escola – e, numa história infantil, é natural que a escola apareça como centro do universo. Mas quando o sucesso estrondoso obriga a “franquia” Harry Potter a ser alçada a fantasia adolescente e, depois, adulta, a escola é ainda centro. Assim, quando o “vilão” (encarnação de um “mal” gratuito e absolutamente sem objetivo, tipicamente infantil), que o Harry Potter adulto é obrigado a enfrentar, deseja “conquistar o mundo”, conquistar a escola é estranhamente o primeiro passo aparentemente necessário.
 
Harry Potter aparece, então, como história de uma recusa obsessiva a abandonar o universo escolar, exaltação da infantilização que paradoxalmente não encoraja senão o medo. Isto não seria problema se tivesse permanecido mais uma história infantil, uma narrativa ruim entre tantas, ao invés de promovida, aos olhos de seu público, a “grande fantasia contemporânea”. Se este é o ápice da fantasia deste tempo, é sinal de que mesmo a potência impotente da imaginação decai. É sinal de que mesmo à imaginação a sociedade presente impõe limites estreitos. E se esta sociedade esmaga até mesmo a capacidade de fantasiar o diverso, que esperança ainda pode haver para o futuro?
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/07/2011.]

quinta-feira, 21 de julho de 2011

[Crítica Social] Liberdade, igualdade, justiça

LIBERDADE, IGUALDADE, JUSTIÇA

Como são sedutoras e belas as palavras vazias que expressam os ideais mais abstratos. Igualdade! Liberdade! Justiça! Quem, em sã consciência, há de ser contra a igualdade, contra a liberdade ou contra a justiça? Mas se pensarmos concretamente, dentro dos horizontes da sociedade determinada na qual vivemos, o que, no fim das contas, cada uma dessas palavras significa?
 
Liberdade, no mundo capitalista, não significa outra coisa senão autonomia do indivíduo, num sentido econômico: a autonomia própria do indivíduo no mercado. Ser livre significa poder comprar e vender quaisquer coisas, produzir o que quer que seja, desempenhar qualquer atividade econômica.
 
Igualdade não é senão a equivalência formal desses indivíduos que, no mercado, aparecem como livres. Todos esses indivíduos rigorosamente dispõem dos mesmos direitos: são todos iguais perante a lei. Nessa condição, não há, no mundo capitalista, nenhum indivíduo juridicamente “superior” a nenhum outro.
 
Justiça, por sua vez, diz respeito à manutenção da equivalência jurídica – entre esses indivíduos livres e iguais – e, mais ainda, da equivalência entre as mercadorias na circulação. Não por acaso, o ideal da justiça é traduzido, entre os juristas, tomando de empréstimo uma antiga expressão romana, como “dar a cada um o que é seu”.
 
O que se pode então notar é que liberdade, igualdade e justiça não são o “contrário” da sociedade capitalista. Em última instância, a liberdade do indivíduo para vender o que quer que seja implica a liberdade para vender também a si próprio. O indivíduo – qualquer indivíduo – é livre inclusive para vender a sua força-de-trabalho a um outro, ou seja: livre para vender a si mesmo. E o faz em plena igualdade: no interior do contrato que celebram, o vendedor de si mesmo dispõe dos mesmos direitos do comprador, ambos são rigorosamente iguais perante o direito. Mais ainda, esta relação é perfeitamente justa porque perfeitamente equivalente. Cada um obtém exatamente “o que é seu”: o trabalhador recebe por sua força-de-trabalho e trabalha apenas porque foi pago, o capitalista paga o salário ao trabalhador e recebe a mercadoria correspondente.
 
O germe de toda a desgraça da sociedade capitalista não tem outra forma senão a da liberdade, da igualdade e da justiça. A sociedade capitalista é, a seu modo, igual, livre e justa – estes não são, portanto, ideais que a negam, mas que a afirmam, inclusive o que há nela de pior. Quando alguém clama qualquer destas três palavras de ordem, não está a exigir nada que a sociedade capitalista não seja plenamente capaz de suprir. Quando alguém clama por mais igualdade, mais liberdade ou por um direito mais justo, está, na verdade, pedindo por mais capitalismo ao invés de exigindo uma transformação social radical.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/07/2011.]

quinta-feira, 14 de julho de 2011

[Crítica Social] Qualidade do ensino ou elitismo?

QUALIDADE DO ENSINO OU ELITISMO?

A Ordem dos Advogados do Brasil divulgou na última semana o resultado do seu último exame de admissão, o pior da história: cerca de 90% dos candidatos foram reprovados.

O índice de reprovação é, sem dúvida, preocupante. O exame da OAB não é o melhor parâmetro para avaliar a qualidade dos cursos jurídicos – o que a prova avalia é apenas a aptidão do candidato para uma específica carreira técnica-jurídica, a de advogado –, mas a reprovação astronômica indica problemas. Por outro lado, não pode haver surpresa: este resultado é a conseqüência imediata da expansão mercantil dos cursos jurídicos, sem qualquer preocupação com a manutenção da qualidade minimamente necessária ao ensino.

Surpreendente mesmo foi a coluna da Folha de São Paulo em que o jornalista Gilberto Dimenstein comenta o desempenho da Faculdade de Direito da USP no exame (4º melhor do país, 63,4% de aprovação), da qual tomo a liberdade de reproduzir um parágrafo:
Sinceramente, a escola mais renomada de direito do país ter esse resultado é um motivo de preocupação. Afinal, muitos de seus alunos, ao contrário das instituições privadas, fizeram um vestibular duro, vêm de boas escolas do ensino médio e são de famílias mais abastadas.
[www.folha.uol.com.br/colunas/gilbertodimenstein/939701-a-usp-nao-deveria-estar-envergonhada.shtml]
Não há dúvida de que a USP deve se preocupar com o desempenho de seus estudantes no exame da OAB – assim como, é claro, todas as demais faculdades de direito do Brasil. Mas também é certo que a USP e todas as demais devem se preocupar com outros quesitos importantes para a qualidade do ensino jurídico, quesitos que não entram em consideração no exame da OAB.

Não há dúvida, no mais, de que a inversão pela qual os estudantes provenientes das classes sociais “abastadas” acabam freqüentando universidades públicas enquanto aqueles provenientes das classes sociais mais pobres freqüentam instituições privadas é terrível e absurda. Mas a “solução” para isto encontrada pelo governo brasileiro desde a década de 1990, sobretudo sob os mandatos do PSDB, tem sido a pior possível: a expansão da rede privada, com o “barateamento” dos cursos superiores e o conseqüente desmoronamento da qualidade do ensino – e os “recordes” de reprovação do exame da OAB são apenas uma demonstração disto.

No entanto, ao que parece, a preocupação do colunista da FSP não exatamente diz respeito a isto. O que o texto parece visar denunciar é que estudantes que cursaram “boas escolas” (leia-se: particulares e caras) e provêm de “famílias abastadas”, ou seja, estudantes provenientes da elite brasileira estão sendo prejudicados por uma universidade pública que lhes oferece resultados apenas medianos no exame da OAB. O problema, então, não é alta reprovação em si, mas a classe social a que pertencem os reprovados. Em outras palavras, por trás de uma suposta preocupação com a qualidade do ensino superior brasileiro, o que se vê é apenas mais do mesmo elitismo que infecta as camadas “mais abastadas” da sociedade brasileira desde sempre. Este, sem dúvida, não é o caminho da solução dos problemas do ensino jurídico, mas o exato oposto.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 13/07/2011.]

quinta-feira, 7 de julho de 2011

[Crítica Social] Ajustes e desajustes

AJUSTES E DESAJUSTES

A sociedade presente deixa para trás muito pouco que não ajuste perfeitamente a si própria. Pouco há que não sucumba ante os limites, as formas, os ideais e as engrenagens deste mundo, pouco há que esta sociedade não arraste consigo num turbilhão de conformismo e cegueira e, assim, pouco há que lhe ofereça ainda qualquer resistência. O lugar dos desajustados é sempre cada vez menor.
 
Quem pode, afinal, resistir ao movimento de uma sociedade inteira, movimento para o qual, no interior desta sociedade mesma, não existe alternativa? Quem pode contrariar o que, no presente, não tem contrário? Quem pode não se conformar se esta forma é a única? Quem pode colocar-se para fora se há apenas o lado de dentro?
 
Quão poucos são aqueles que, a despeito de tudo, não se contentam, que não se entregam docilmente ao jogo das grandes forças e dos grandes interesses que manipulam este tempo e que preferem ainda a angústia, mesmo que silenciosa e impotente, da recusa. Mas mesmo entre estes poucos, quem pode resistir às pequenas falsas esperanças e às pequenas esmolas eventualmente oferecidas? Quem pode sacrificar os anseios pessoais, os interesses privados ou mesmo a própria felicidade à radicalidade de uma oposição sem perspectivas, sem chances minimamente razoáveis de sucesso imediato?
 
A ilusão do progresso, num mundo que caminha vorazmente à degradação. A retórica dos direitos humanos, num mundo que não pode dispensar uma coisificação absoluta dos homens. A sedução da democracia, num mundo em que a maioria não pode ser senão subjugada por uma minoria. As mentiras todas que não cumprem senão o ajuste fino dos desajustados, que colocam o próprio inconformismo a serviço da conformidade à realidade dada. Mas quem pode resistir à tentação? Quem está realmente disposto a tanto?
 
Qual a fronteira entre ajuste e desajuste no grande abatedouro de homens que é a sociedade capitalista? A única conclusão conseqüente a que alguém pode chegar é a de que não há nada que se possa fazer para transformar o mundo. Quem será insano o suficiente para, ainda com esta conclusão em mente, continuar a se opor? Quem será insano o suficiente para, na contracorrente de tudo que há neste mundo, declarar-se e manter-se em oposição?
 
E que esperança restará a este mundo se insanidade necessária para isto finalmente se acabar?


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/07/2011.]

quinta-feira, 30 de junho de 2011

[Crítica Social] Deus e a homofobia

DEUS E A HOMOFOBIA

Deus não “gosta” da homossexualidade. Isto é o que dizem os representantes de muitas das religiões mais seguidas no Brasil, especialmente como argumento contra medidas de repressão à homofobia. E a maior resistência a tais medidas – como, por exemplo, o projeto de lei que criminaliza a discriminação contra homossexuais – vem hoje precisamente de certos grupos religiosos (em coro, claro, com os setores políticos mais aberta e irracionalmente conservadores de que dispomos).
 
Pergunto-me: se existe mesmo algo como um deus, por que ele não gostaria da homossexualidade? Ou então, por que os “porta-vozes” de deus pretendem que a homossexualidade seja condenada, em nome de deus, não apenas religiosamente, mas também política e juridicamente?
 
Ora, se uma religião qualquer tem, entre seus princípios, a proibição a uma certa orientação sexual, isto há de ser, no máximo, um problema interno a esta religião. Um homossexual adepto desta religião terá diante de si sempre duas opções: ou cede aos princípios de sua crença ou abandona a religião incapaz de aceitar a sua sexualidade. Mas uma religião qualquer ou mesmo todas as religiões contrárias à homossexualidade em conjunto não podem pretender perpetuar a homofobia para toda uma sociedade. Pretender tal coisa é, para qualquer religião, um abuso, uma arbitrariedade e uma invasão inadmissível da política pela crença.
 
Se cada um de nós deve ser livre para seguir qualquer religião, sem obrigatoriedade e sem discriminação, então cada um de nós deve ser livre para seguir a orientação sexual que lhe aprouver, igualmente sem imposições e sem discriminação. Que justificativa poderia haver em contrário? Se ninguém pode ser obrigado a seguir uma religião qualquer, que justificativa haveria para que alguém, porque uma ou algumas religiões assim pretendem, seja constrangido a continuar aceitando uma hedionda discriminação por conta de sua orientação sexual? Ou ainda, por que motivo os mesmos representantes religiosos que certamente são favoráveis à criminalização da discriminação por crença são, por outro lado, contrários à criminalização da discriminação por orientação sexual?
 
Não me parece que deus exista, mas certamente existem muitos homens que dizem conhecer os seus “gostos”. Para estes homens, ainda vale perguntar: do que, então, deus gosta? Deus gosta do preconceito? Do sofrimento causado a homens e mulheres cuja orientação sexual apenas “diverge” da “maioria”? Da segregação social de homens e mulheres que só pretendem viver a própria sexualidade com liberdade? Ou pior, deus gosta da mercantilização da religião? Deus gosta de assistir a pastores vendendo, por boleto bancário, indulgências na TV? Porque se deus gosta disto, então parece muito mais razoável ficar mesmo com o que deus não gosta...
 
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/06/2011.]

quinta-feira, 23 de junho de 2011

[Crítica Social] Capitalismo, comida e terror

CAPITALISMO, COMIDA E TERROR

Food Inc., lançado em 2008, é um interessante documentário que denuncia muito do que há de escuso e terrível por trás de algumas das maiores corporações mundiais do setor de alimentos. O vídeo exige, na verdade, muito do estômago do espectador que, minuto a minuto, é levado a saber o que há na carne, no milho ou na soja que diariamente ingerimos – ou melhor, aquilo que os interesses mais incontroláveis na multiplicação dos lucros nos levam a ingerir na carne, no milho ou na soja, bem como os riscos decorrentes disto.

Acima de tudo, é chocante pensar, em vista de todas as denúncias – e, no fundo, deve haver muito mais a denunciar –, o que as relações econômicas em meios às quais vivemos podem nos proporcionar. Como todos os setores da indústria no mundo capitalista, a indústria de alimentos tem uma meta que sobrepõe todas mais: o lucro. Como qualquer capital que produz, o capital industrial radicado no setor de alimentos vê os seus produtos como meros suportes de valor, ou seja, pura e simplesmente como mercadorias – tudo que importa, então, é que tais mercadorias sejam produzidas com o menor custo possível e que sejam vendidas na maior quantidade possível.

Noutras palavras, pouco importa que as mercadorias sejam, neste caso, alimento. Pouco importa que elas venham a preencher estômagos – muitos estômagos –, que venham a transformar-se na vida e na saúda de milhares ou milhões de pessoas. Pouco importa que os “efeitos colaterais” sejam terríveis, pouco importa se esta comida é, na verdade, veneno. Pouco importa tudo isto, porque, no fim das contas, pouco importa para que serve a mercadoria, o que ela faz ou a que necessidades atende – desde que alguém a compre.

Entre destruir a saúde dos consumidores ou reduzir as taxas de lucro, o capital não pode senão escolher a primeira opção. Afinal, lucrar vendendo veneno ou vendendo comida é, para o capital, absolutamente indiferente: se, no limite, for mais lucrativo vender veneno como comida...

O grande problema, claro, é que, no mundo capitalista, ninguém pode ter acesso a mercadoria alguma, nem mesmo aos alimentos ou ao que há de mais básico para a sobrevivência, senão por intermédio do mercado. E a grande capital, é claro, domina, como em todos os setores, a esmagadora maior parcela do mercado. Por detrás da imensa variedade de tipos, marcas, rótulos, embalagens etc. não há, na verdade, muita escolha. Não há alternativa. O capital é que decide, por seus próprios interesses, o que nós comeremos.

Nós literalmente não sabemos sequer o que estamos comendo – e, seja lá o que for, isto talvez nos mate... Mas que importa, que diferença faz, se o lucro de alguém estiver ainda garantido?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 22/06/2011.]