quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

[Crítica Social] Sem terra, sem direito

SEM TERRA, SEM DIREITO

Santos ou pecadores, vítimas ou opressores, os sem-terra têm a peculiaridade de despertar esperança e temor na mesma medida. Para aqueles que anseiam por mudança, os sem-terra personificam a capacidade de, contra tudo e contra todos, fazer valer a indignação, a resistência, a ação. Para aqueles que, pelo contrário, temem a mudança, os sem-terra representam o potencial de desordem que ameaça a ordem estabelecida.

Que direito têm eles de tomar a propriedade alheia? – argumentam seus opositores. Ora, de um ponto de vista estritamente jurídico a resposta é simples: nenhum direito. O proprietário detém o título de propriedade privada, ainda que improdutiva a sua terra. Se o poder público possui, sob o pretexto da “função social” da propriedade, a prerrogativa de expropriá-lo para promover a reforma agrária, isto é outra questão – os sem-terra permanecem, diante daquela senhora vendada, meros turbadores da lei. O duelo se dá entre o “supremo” direito de propriedade, constitucionalmente assegurado e fartamente esmiuçado pelo direito civil, e o absoluto não-direito.

Qualquer semelhança entre um suposto “direito dos sem-terra” e o “direito de greve” não seria, então, mera coincidência. No início do capitalismo industrial, as greves firmaram-se como principal instrumento de reivindicação dos trabalhadores. Eram uma afronta direta ao capital e por isso encontravam violenta repressão por parte do Estado. Assim como no caso dos sem-terra, negar aos trabalhadores o “direito de greve” implicava condená-los à resignação, implicava reconhecer aos capitalistas o poder de submetê-los às mais inumanas condições de trabalho, sem resistência.

Após décadas de luta, um direito formal de greve começou a ser positivado nos mais diversos países. No entanto, foram estabelecidas as seguintes restrições: para ter amparo legal, a greve deve se limitar a reivindicações de caráter profissional (salários, jornada, férias, etc.) e não pode obstruir de forma absoluta a produção. Em outras palavras, a greve só é legal se não tem caráter político – se o tiver, o capitalista pode procurar o Poder Judiciário, que declarará a greve abusiva e fará recair sobre os trabalhadores o peso da condição de violadores da lei. O reconhecimento do direito de greve foi, como se vê, mais uma conquista do capital do que dos trabalhadores. Não foi a consagração, mas a “domesticação” da greve.

Assim, se, por um lado, exaltar o movimento dos sem-terra como signo prognóstico de uma mudança social vindoura seria um exagero, por outro, cumpre reconhecer que, no interior deste misto de capitalismo avançado com coronelismo rural que é a sociedade brasileira atual, um elemento não-domesticado é profundamente incômodo. Em português claro, uma “pedra no sapato” da ordem estabelecida e da classe social por ela beneficiada. E isso mesmo não tendo os sem-terra direito algum... Ou melhor, precisamente por não terem direito algum... É, afinal, no fato de não terem direito que reside toda a sua força.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 26/01/2011.]
[Texto adaptado a partir daquele já publicado neste blog em abril de 2007.]

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

[Crítica Social] Janeiro sangrento

JANEIRO SANGRENTO

O mês de janeiro parece ter se tornado um mês de terror no Brasil. A causa deste terror, no entanto, não é um conflito religioso ou uma disputa política extremada ou qualquer ação violenta deliberada. A sua causa é um fenômeno natural – mais ainda, um fenômeno natural que se repete anualmente: as chuvas.

Assim, em todos os meses de janeiro assistimos, em função das chuvas de temporada, aos mesmos acontecimentos catastróficos: inundações, deslizamentos de terra, centenas de mortos, milhares de desabrigados. Assistimos à mesma dramatização dos eventos pela grande mídia, assistimos às mesmas campanhas de mobilização para atender às vítimas, assistimos impotentes à ação da mesma natureza que, de um modo geral, pensamos controlar.

Assistimos, em especial, sempre às mesmas justificativas: a culpa é das chuvas, a culpa é da geologia das áreas que sofrem deslizamentos, a culpa é daqueles que irresponsavelmente habitam áreas de risco. Mas culpa nunca é atribuída à completa ausência de providências ou ao completo despreparo diante de eventos que sabidamente irão se repetir de janeiro em janeiro.

Perguntemo-nos: por que as providências necessárias (obras de contenção, evacuação de áreas de risco etc.) não são tomadas? Ou, o que dá no mesmo: por que o lamento prevalece sobre a precaução?

As respostas certamente não poderão evitar considerar quem são as vítimas das catástrofes relacionadas às chuvas. Pois se é certo que os eventos naturais não distinguem classe social – ora, a distinção de classe social não é natural como supõe parte de nossas elites –, é igualmente certo que a distinção de classe social é o único fator que explica por que motivo populações inteiras se fixam em áreas de encosta, em regiões usualmente sujeitas a inundação ou em localidades suscetíveis à ação das chuvas de um modo geral. A classe social da maior parte das vítimas explica, ao mesmo tempo, porque o poder público protela as medidas preventivas que já há muito tempo deveriam ter sido tomadas.

Se é inevitável que as chuvas causem vítimas (ou, na melhor das hipóteses, que representem sério risco todos os anos), porque afinal a natureza não pode ser completamente contida, é preciso ter em conta, por outro lado, que apenas a exclusão social explica o número assustador de vítimas que efetivamente temos. Não adianta, por isso mesmo, lamentar pelas chuvas ou esperar por clemência da natureza. Também o nosso “janeiro sangrento” é parte, sem dúvida, da questão social brasileira.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/01/2011.]

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

[Crítica Social] Heavy metal e crítica social

Para Júlio Criscimani

HEAVY METAL E CRÍTICA SOCIAL


Há, talvez, mais a se dizer sobre o que o heavy metal não é do que propriamente sobre o que é. Ou, no mínimo, isto parece mais fácil – mesmo para um adepto. O heavy metal não é exatamente um gênero musical homogêneo. Não é, igualmente, um gênero universalmente apreciado ou – o que é o mesmo – amplamente difundido pela grande mídia. Em especial, não é um gênero a ser contado entre os mais politizados – certamente está muito atrás, nesse aspecto, de gêneros como, por exemplo, o punk.

No entanto, a despeito da sua própria recusa a respeito, o heavy metal tem um aspecto político não de todo insignificante. E não se trata de uma politicidade de direita, conservadora ou mesmo reacionária, como usualmente – e, não raro, de forma deturpa – se supõe.

É bem verdade que um certo apelo do heavy metal ao passado é comum. É, de fato, tema constante de suas músicas a glorificação de uma visão – romantizada e, portanto, irreal – da Idade Média, de uma idealização da vida guerreira ou cavaleiresca, da mitologia nórdica (ou de quaisquer outros mitos pré ou anticristãos) etc. Comum, no mesmo sentido, uma certa aproximação ou tentativa de aproximação em relação à música clássica.

Isto, porém, não implica uma imediata assimilação do heavy metal a um apelo político pelo regresso, um anacrônico conclamo à restauração. O apelo ao passado não significa – pelo menos não necessariamente – um saudosismo do estamento, uma defesa do privilégio ou, de uma maneira mais geral, uma apologia a algum tipo de segregação social. Trata-se, acima de tudo, de uma manifestação de contrariedade à sociedade presente, de uma oposição à ordem estabelecida.

É verdade que, no limite, o heavy metal não está isento de ligações até mesmo com visões políticas fascistas. À exceção de um infeliz extremo, contudo, o heavy metal em geral dá vazão, de um modo no mais das vezes politicamente inconsciente por parte de seus adeptos, a um profundo incômodo em relação ao mundo dado aqui e agora. A nostalgia de um passado não vivido funciona aqui como alternativa – ainda que de modo meramente ideal e, portanto, conscientemente ineficaz – àquilo que está dado e que, diante do desconforto dos desajustados, parece imutável.

Em outras palavras, o heavy metal opera por um mecanismo próximo ao escapismo, como uma espécie de fuga imaginária que canaliza uma massa de contrariedade impotente e, por isso mesmo, cada vez mais reduzida à impotência. Não há de ser, portanto, um gênero revolucionário. Como tudo mais no mundo capitalista, o heavy metal não escapa da dinâmica da mercadoria – e o seu caráter de contrariedade é exatamente o que garante o seu mercado. Por outro lado – e eis o seu aspecto político importante –, a sua simples existência (ou melhor, a existência dos seus adeptos) indica que este mundo não está tão seguro quanto parece.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 12/01/2011.]

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

[Crítica Social] O contrato e o capital

O CONTRATO E O CAPITAL

O calhamaço de papel, as letras miúdas, o advogado espertalhão que manipula as cláusulas, o momento tenso da assinatura. O ingênuo que perde tudo porque assinou um contrato. O chantagista que, por uma manobra, força alguém a assinar um contrato. Ou mesmo o demônio que, ao trocar um favor qualquer pela alma de um desesperado, formaliza o acordo num contrato. No cinema, na literatura, no imaginário popular, as representações do contrato são sempre as mesmas.

Isto, claro, não é por acaso. O contrato é uma das figuras jurídicas centrais do mundo contemporâneo, está intimamente relacionado à dinâmica da sociedade capitalista e, por isso, aparece como uma forma quase onipresente. É exatamente por esta razão que o contrato assume, entre nós, um caráter quase sagrado, inquestionável e inviolável – mas qual é, no fim das contas, a autoridade do papel sobre os homens que o assinam?

O fundamento último do contrato é, sem dúvida, a relação de compra e venda. Este é, na verdade, o modelo a partir do qual todo o universo jurídico é estruturado. E já aqui um dos efeitos imediatos do contrato aparece com toda a clareza: comprador e vendedor, não importa quem sejam e nem qual bem negociem, aparecem como juridicamente iguais – isto é, ambos têm os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Não importa que sejam dois magnatas negociando imóveis para especulação ou que uma das partes seja alguém que, tendo caído na miséria, vende o único imóvel da família como última medida desesperada – vendedor e comprador são, aos olhos do direito, rigorosamente iguais.

Gradualmente, contudo, outras relações sociais, mesmo muito distantes da compra e venda, assumem a forma contratual. Exemplo bastante claro a esse respeito é o casamento: ainda que disfarçada ou negada eventualmente, a natureza jurídica d o casamento é, na essência, o contrato. Isto explica as formalidades todas, as promessas solenes, as testemunhas etc. – do ponto de vista do direito, os noivos são, em suma, duas mercadorias que negociam a si próprias e que se vendem uma à outra.

Mais importante para o mundo capitalista é o que se passa com outra relação, a assim chamada relação de trabalho. O contrato permite aqui uma operação essencial para o funcionamento do capitalismo: a troca de força de trabalho por salário. Na exata medida em que esta relação aparece como um contrato, o trabalhador e o seu empregador figuram como juridicamente iguais. Eles não realizam aqui senão um contrato de compra e venda. E assim, por meio do direito, em plena igualdade jurídica, o capital explora o trabalho.

A autoridade do contrato não é, portanto, a autoridade do papel: é a autoridade do capital. E enquanto o domínio do capital competentemente cuida de assimilar tudo à forma da circulação de mercadorias, cuida simultaneamente a assimilar tudo à forma do contrato.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/01/2011.]