quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

[Crítica Social] Sobre a criminalização da homofobia

SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA

A criminalização de tudo é, sem dúvida, um problema, não uma solução. É a resposta-padrão, gasta pelo uso e já há tempos desprovida de qualquer sentido, do caquético legado do juridiquês: a crença cega de que a lei pode resolver qualquer coisa. Mas há que se ponderar cada caso, é evidente, de acordo com as suas peculiaridades. Se considerarmos, assim, em específico, a homofobia, as peculiaridades são tais que a conclusão só pode ser o exato oposto do geral: a criminalização aqui já tardou demasiado.

Qual pode ser, afinal, a justificativa em contrário? Praticamente todas as demais formas de discriminação – por raça, cor, sexo, religião etc. – são, já há vários anos, consideradas crime no Brasil, mas não é o caso da discriminação por opção sexual. E qual a explicação para isto? O que pode justificar tamanha distinção entre situações tão semelhantes? Ora, absolutamente nada. É apenas por uma total arbitrariedade que se pode supor que tal distinção permaneça.

A resistência maior a qualquer modificação legislativa nesse sentido tem sido, até o momento, de grupos políticos abertamente conservadores e de certos representantes religiosos. Em comum, todos têm a mesma incapacidade de apresentar a sua contrariedade sob forma minimamente racional: são contra a criminalização da homofobia porque... são homofóbicos?... são favoráveis ao preconceito? O que mais pode ser?

O limite é absoluto: o preconceito não pode ser apresentado, em nenhuma hipótese, em termos racionais. E o mais irracional dos argumentos é exatamente aquele que tem prevalecido. É bem verdade que, em nome do livre jogo democrático, há quem pretenda que qualquer argumento seja politicamente defensável: mas o argumento a favor do preconceito, a favor da persistência da discriminação, é ao menos compatível com a democracia? Noutras palavras: o argumento em favor da minimização social e segregação injustificada de um grupo inteiro é compatível com a democracia? A resposta, ao que parece, só pode ser não.

A posição contrária à criminalização da homofobia é retrógrada mesmo dentro dos estreitos limites da democracia formal burguesa. É retrógrada porque pretende ratificar por meio da lei uma situação essencialmente incompatível com a própria forma do direito: uma situação de desigualdade que coloca os homossexuais abaixo de qualquer outro grupo social. É retrógrada porque pretende barrar um passo que, embora devamos reconhecer insuficiente, pode contribuir para a erradicação de uma forma de discriminação longamente arraigada entre nós. É retrógrada, em última análise, porque pretende deter uma – ainda que mínima – transformação social.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/02/2011.]

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

[Crítica Social] A democracia no Egito

A DEMOCRACIA NO EGITO

Em tempos de imobilismo político, de conformismo e passividade, em que os grandes movimentos de massa parecem ter desaparecido e em que a esquerda parece ter desistido de suas mais altas pretensões, a mobilização popular no Egito parece ser mesmo algo a exaltar. Há, sem dúvida, algo de admirável no povo de pé, unido, exigindo transformações políticas. A real extensão das suas conquistas políticas, no entanto, há de ser ponderada com mais cuidado.

É certo que manter ao longo de 30 anos o mesmo governante não é algo salutar para política alguma. Mais ainda se considerarmos o caráter conservador deste governo e os seus compromissos – nem sempre declaráveis – com o imperialismo norte-americano. Mas a renúncia de Hosni Mubarak não pode ser interpretada, por si só, como uma mudança profunda em benefício do povo do Egito.

Ainda que obtida a certo custo, não se pode desconsiderar o papel da grande mídia internacional, bem como as pressões de potências estrangeiras, na renúncia de Mubarak. E, acima de tudo, não se pode esperar que uma simples substituição do governante resulte em algo efetivamente favorável à população. Não está eliminado sequer o risco, que não pode mesmo ser ignorado, dos desdobramentos da queda de Mubarak conduzirem a algo ainda pior. De todo modo, se a mesma elite permanecer no poder e se não houver qualquer modificação política estrutural, os protestos na Praça Tahrir terão sido, ao fim, praticamente em vão.

Analisando concretamente, tudo indica que o resultado das agitações políticas no Egito será, na melhor das hipóteses, a instauração de uma democracia formal, uma democracia nos padrões ocidentais. Eleições periódicas, mandato presidencial limitado, um parlamento funcional etc. As forças políticas dominantes, tanto internas quanto externas, não permitirão, afinal, mais do que isto.

Mas a democracia formal é o suficiente? Isto basta para caracterizar uma “revolução popular”? Certamente não. A democracia formal tende apenas a fornecer legitimação ao mesmo jogo políticos das classes dominantes, para perpetuação dos mesmos grupos atualmente no poder. Não é, nem pode ser, uma autêntica forma de poder popular. Não é, nem pode ser, o objetivo final de um movimento autenticamente revolucionário.

O movimento popular no Egito deveria servir de exemplo para a mobilização de outros levantes, outros protestos pelo mundo. Deveria servir de exemplo para as tantas outras exigências que as massas têm para opor ao domínio das mesmas elites, do mesmo capital. Mas o termo há de ser outro. A mobilização não pode cessar por migalhas, não pode se bastar com conquistas menores. A democracia no Egito não é o símbolo da vitória da revolução, mas o símbolo de uma revolução que não foi levada a cabo.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/02/2011.]

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

[Crítica Social] Maioria perseguida

MAIORIA PERSEGUIDA

Sempre que alguém ousa remar contra a correnteza e falar a favor de qualquer minoria, sempre que alguém ousa questionar os padrões dominantes, não faltam protestos – em geral raivosos e irracionais – por parte da maioria que se sente “ameaçada”. Estranho, no entanto, que esses protestos não raro apareçam sob a forma de uma absurda e forçada “vitimização” – como se a alguns dos porta-vozes da maioria, diante dos argumentos pró-minorias, quisessem inverter a posição da vítima para dela tirar proveito.

O teste é simples. Basta, por exemplo, falar, em qualquer contexto, contra o racismo ou contra a homofobia. Não tardará até que alguém reclame que a maioria branca, católica e heterossexual está sendo ofendida, que não estão respeitando o seu espaço ou os seus “direitos” etc. Não é incomum mesmo que esta “vitimização” arbitrária descambe numa insensata teoria da conspiração, como se alguma trama prodigiosa pela supressão do “direito” a ser branco ou católico ou heterossexual estive em jogo. Logo a maioria branca, católica e heterossexual é apresentada como “perseguida” e as minorias, quaisquer que sejam, como suas algozes.

Ora, uma maioria perseguida? Isto sequer faz sentido? Uma maioria perseguida não seria mesmo maioria. E não se trata aqui, é evidente, de uma maioria em sentido numérico – os donos do capital, por exemplo, são pouquíssimos diante da massa dos trabalhadores. A maioria é maioria porque os seus valores são os dominantes, a sua régua é a medida da sociedade, os seus padrões estabelecem o centro a partir do qual se desenha o círculo. São tais padrões que, afinal, determinam o normal e o anormal, o incluído e o excluído. A maioria assim, não é perseguida, nem pode sê-lo.

No mais, o que seria – se fosse – esta “perseguição” da maioria? Negros, homossexuais, minorias religiosas e quaisquer outras sofrem discriminação, exclusão, violência. Mas a maioria que se alega “perseguida” parece ter apenas um motivo para protestar: a simples existência de grupos divergentes. O que “ameaça” a maioria é, portanto, a simples ousadia em divergir, a simples possibilidade da diferença, o simples questionamento. Isto, no fim das contas, apenas confirma a maioria como maioria – e a sua incapacidade de lidar com a diferença contribui para explicar, por outro lado, por que há minorias.

O que mais se pode esperar? Que os ricos se apresentem como vítimas diante da própria riqueza? Que o patrão seja vítima de seus empregados? Não surpreende, na verdade, que a estratégia de transformar opressor em oprimido funcione como parte do arsenal ideológico dos grupos dominantes. Mas o argumento reacionário não elide a realidade fundamental: os divergentes existem – e, enquanto existirem, enquanto houver descontentes, a tranqüila continuidade deste mundo dominado estará sempre em risco.

[Texto inspirado pelo inteligente - pelo menos em parte - vídeo de PC Siqueira: www.youtube.com/watch?v=cXciiN9fGs8.]

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/02/2011.]

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

[Crítica Social] Consumir conscientemente para consumir mais

CONSUMIR CONSCIENTEMENTE PARA CONSUMIR MAIS

Ecologicamente correto. Reciclável. Socialmente responsável. A sociedade da glorificação do consumo encontrou a solução final para o politicamente correto: transformou-o em moda e adicionou mais um elemento à poderosa maquinaria que empurra o indivíduo ao consumo.

A solução não poderia ser outra. Mesmo quando a desmedida do consumo ameaça o esgotamento dos recursos naturais do planeta, a sociedade presente não pode responder de outro modo senão transformando a desgraça em mais consumo. O consumo desmedido é apresentado como o grande problema, mas o discurso politicamente correto da salvação do planeta é cuidadosamente invertido em publicidade para consumir ainda mais.

“Compre X porque é feito com material reciclado.” “Compre Y porque é feito com fibras naturais.” “Compre Z porque é produzido de modo sustentável.” De tudo, o que realmente importa é o “compre”. O mundo vai acabar porque compramos demais – a solução: compre mais! Então a necessidade de frear o consumo, a imposição de destruir o império do consumismo, tudo se resolve da maneira exatamente contrária. E o mundo segue a toda velocidade rumo ao colapso.

Isto é possível porque o discurso politicamente correto, ao limitar-se à forma de apelo à consciência individual, abdica da possibilidade de desvelar as reais causas do problema e, assim, abre brecha para a sua própria inversão. O que, em nenhuma hipótese, este discurso considera é que as mazelas causadas pelo consumismo desmedido não são determinadas pela simples ânsia por comprar, tampouco pela falta de consciência por parte dos consumidores. As suas raízes são muito mais profundas: estão calcadas na estrutura produtiva cujo objetivo único é multiplicar o capital.

Ora, uma vez que a produção capitalista não visa diretamente atender necessidades humanas, uma vez que a sua organização não é dada senão pelo lucro, a desmedida do consumo é um de seus fatores-chave. O consumo desmedido é a realização contínua do valor captado pela exploração do trabalho, é a realização contínua da multiplicação do capital. No outro extremo, porém, é a desmedida exploração dos recursos ambientais. Não é possível, no interior desta formação social, barrar a multiplicação do capital – por isso o esgotamento ambiental que aparece como ameaça não pode ser senão revertido em multiplicação acelerada. Entre o fim do mundo e o lucro, o capital não pode escolher senão o fim do mundo.

Enquanto não concentrarmos a produção naquilo que é realmente necessário aos homens, de modo a reduzir a utilização dos recursos naturais àquilo que realmente importa, a ameaça do esgotamento natural não será superada. Enquanto não deixarmos de desperdiçar forças humanas e recursos naturais em quinquilharias infinitas e imprestáveis que, no entanto, são compradas freneticamente, nada mudará. Não se trata, pura e simplesmente, de mudar o consumo. Trata-se de transformar o modo pelo qual toda uma sociedade se organiza para produzir.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/02/2011. REVISTA TEM (Dracena-SP), abril/2011.]