quinta-feira, 30 de junho de 2011

[Crítica Social] Deus e a homofobia

DEUS E A HOMOFOBIA

Deus não “gosta” da homossexualidade. Isto é o que dizem os representantes de muitas das religiões mais seguidas no Brasil, especialmente como argumento contra medidas de repressão à homofobia. E a maior resistência a tais medidas – como, por exemplo, o projeto de lei que criminaliza a discriminação contra homossexuais – vem hoje precisamente de certos grupos religiosos (em coro, claro, com os setores políticos mais aberta e irracionalmente conservadores de que dispomos).
 
Pergunto-me: se existe mesmo algo como um deus, por que ele não gostaria da homossexualidade? Ou então, por que os “porta-vozes” de deus pretendem que a homossexualidade seja condenada, em nome de deus, não apenas religiosamente, mas também política e juridicamente?
 
Ora, se uma religião qualquer tem, entre seus princípios, a proibição a uma certa orientação sexual, isto há de ser, no máximo, um problema interno a esta religião. Um homossexual adepto desta religião terá diante de si sempre duas opções: ou cede aos princípios de sua crença ou abandona a religião incapaz de aceitar a sua sexualidade. Mas uma religião qualquer ou mesmo todas as religiões contrárias à homossexualidade em conjunto não podem pretender perpetuar a homofobia para toda uma sociedade. Pretender tal coisa é, para qualquer religião, um abuso, uma arbitrariedade e uma invasão inadmissível da política pela crença.
 
Se cada um de nós deve ser livre para seguir qualquer religião, sem obrigatoriedade e sem discriminação, então cada um de nós deve ser livre para seguir a orientação sexual que lhe aprouver, igualmente sem imposições e sem discriminação. Que justificativa poderia haver em contrário? Se ninguém pode ser obrigado a seguir uma religião qualquer, que justificativa haveria para que alguém, porque uma ou algumas religiões assim pretendem, seja constrangido a continuar aceitando uma hedionda discriminação por conta de sua orientação sexual? Ou ainda, por que motivo os mesmos representantes religiosos que certamente são favoráveis à criminalização da discriminação por crença são, por outro lado, contrários à criminalização da discriminação por orientação sexual?
 
Não me parece que deus exista, mas certamente existem muitos homens que dizem conhecer os seus “gostos”. Para estes homens, ainda vale perguntar: do que, então, deus gosta? Deus gosta do preconceito? Do sofrimento causado a homens e mulheres cuja orientação sexual apenas “diverge” da “maioria”? Da segregação social de homens e mulheres que só pretendem viver a própria sexualidade com liberdade? Ou pior, deus gosta da mercantilização da religião? Deus gosta de assistir a pastores vendendo, por boleto bancário, indulgências na TV? Porque se deus gosta disto, então parece muito mais razoável ficar mesmo com o que deus não gosta...
 
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/06/2011.]

quinta-feira, 23 de junho de 2011

[Crítica Social] Capitalismo, comida e terror

CAPITALISMO, COMIDA E TERROR

Food Inc., lançado em 2008, é um interessante documentário que denuncia muito do que há de escuso e terrível por trás de algumas das maiores corporações mundiais do setor de alimentos. O vídeo exige, na verdade, muito do estômago do espectador que, minuto a minuto, é levado a saber o que há na carne, no milho ou na soja que diariamente ingerimos – ou melhor, aquilo que os interesses mais incontroláveis na multiplicação dos lucros nos levam a ingerir na carne, no milho ou na soja, bem como os riscos decorrentes disto.

Acima de tudo, é chocante pensar, em vista de todas as denúncias – e, no fundo, deve haver muito mais a denunciar –, o que as relações econômicas em meios às quais vivemos podem nos proporcionar. Como todos os setores da indústria no mundo capitalista, a indústria de alimentos tem uma meta que sobrepõe todas mais: o lucro. Como qualquer capital que produz, o capital industrial radicado no setor de alimentos vê os seus produtos como meros suportes de valor, ou seja, pura e simplesmente como mercadorias – tudo que importa, então, é que tais mercadorias sejam produzidas com o menor custo possível e que sejam vendidas na maior quantidade possível.

Noutras palavras, pouco importa que as mercadorias sejam, neste caso, alimento. Pouco importa que elas venham a preencher estômagos – muitos estômagos –, que venham a transformar-se na vida e na saúda de milhares ou milhões de pessoas. Pouco importa que os “efeitos colaterais” sejam terríveis, pouco importa se esta comida é, na verdade, veneno. Pouco importa tudo isto, porque, no fim das contas, pouco importa para que serve a mercadoria, o que ela faz ou a que necessidades atende – desde que alguém a compre.

Entre destruir a saúde dos consumidores ou reduzir as taxas de lucro, o capital não pode senão escolher a primeira opção. Afinal, lucrar vendendo veneno ou vendendo comida é, para o capital, absolutamente indiferente: se, no limite, for mais lucrativo vender veneno como comida...

O grande problema, claro, é que, no mundo capitalista, ninguém pode ter acesso a mercadoria alguma, nem mesmo aos alimentos ou ao que há de mais básico para a sobrevivência, senão por intermédio do mercado. E a grande capital, é claro, domina, como em todos os setores, a esmagadora maior parcela do mercado. Por detrás da imensa variedade de tipos, marcas, rótulos, embalagens etc. não há, na verdade, muita escolha. Não há alternativa. O capital é que decide, por seus próprios interesses, o que nós comeremos.

Nós literalmente não sabemos sequer o que estamos comendo – e, seja lá o que for, isto talvez nos mate... Mas que importa, que diferença faz, se o lucro de alguém estiver ainda garantido?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 22/06/2011.]

quinta-feira, 16 de junho de 2011

[Crítica Social] Agricultor, terra, capital

AGRICULTOR, TERRA, CAPITAL

Talvez não haja, em toda a extensa cadeia produtiva capitalista, figura mais “antiquada” do que a do pequeno agricultor, aquele que dispõe de uma pequena área de terra – porque proprietário, arrendatário etc. – e produz em pequena escala, de modo quase artesanal, lidando diariamente com a terra, com a sua plantação, com os seus animais. A sua situação é, na realidade, pouco melhor que a do produtor direto (o trabalhador braçal, o operário etc.): o elemento diferenciador é a posse dos meios de produção, no caso a terra e alguns poucos instrumentos rústicos. Mas o modo pelo qual o pequeno agricultor coloca em movimento os seus meios de produção é avesso ao modo que o capitalismo avançado exige. Falta-lhe dinamismo, avidez de lucro...
 
Vejamos. Por um lado, a agricultura industrial, a agricultura em grande escala que assimilou as técnicas empresariais, produz essencialmente para o mercado, focada no valor de troca de seus produtos e voltada à maximização de lucros. No outro extremo, o pequeno agricultor produz tanto para si quanto para o mercado (em geral, só excedentes), produz sozinho ou com a família, produz com foco no valor de uso (um tomate vale como tomate e uma cenoura, como cenoura, não como meros preços) e seu lucro ou não existe ou é mínimo.
 
O pequeno agricultor, no mais, mantém com a terra um vínculo concreto. Seu trabalho diverge, em alguma medida, do trabalho abstrato típico, subjugado pelo capital. Orgulhoso, ele pode, por exemplo, observar as hortaliças colhidas e saber que são o produto de suas mãos e de seu suor. Pode saber que seu esforço resultou em utilidades para saciar a sua fome e a de outros. Pode, como homem concreto, reconhecer a si próprio nos produtos concretos de seu trabalho.
 
Por isso, nas sociedades capitalistas avançadas, o pequeno agricultor é um símbolo do “atraso”. Para usar uma analogia, ele é visto como uma “espécie primitiva” que sobreviveu, sabe-se lá porquê, em meio às “espécies avançadas”. Estas querem a todo custo devorá-lo: e o fazem através de um círculo vicioso que torna o pequeno agricultor cada vez mais dependente do grande capital.
 
Em primeiro lugar, porque o setor agrícola como um todo sofre pressão constante do capital em geral para reduzir suas margens de lucro. Interessa, afinal, que o essencial à sobrevivência dos trabalhadores não custe tanto, para que os capitalistas não precisem aumentar-lhes o salário. E esta pressão, claro, é sentida sempre mais forte precisamente pelos mais fracos: ao forçar para baixo o preço dos produtos rurais, quem perde mais é quem ganha menos.
 
Em segundo lugar, porque a pequena agricultura foi feita incapaz de produzir independentemente do setor financeiro. O agricultor se tornou refém de bancos e seus empréstimos, sem os quais não consegue iniciar um novo plantio, pouco restando que os juros não tomem.
 
Na sociedade capitalista produtivista, consumista, financista, o pequeno agricultor é a contramão, por isso é permanentemente marginalizado e ameaçado de extinção. Mas quando, numa sociedade futura, a opressão do capital tiver chegado ao fim, ficará claro que a sua resistência valeu a pena – porque criou raízes e frutificou.
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/06/2011.]
[Texto adaptado a partir daquele já publicado neste blog em janeiro de 2009.]

quinta-feira, 9 de junho de 2011

[Crítica Social] O que é “interesse público” em São Paulo?

O QUE É “INTERESSE PÚBLICO” EM SÃO PAULO?

Tem sido objeto de debate, nas últimas semanas, a construção do estádio de São Paulo que deverá abrigar os jogos da Copa de 2014. A esse respeito, o governo estadual tem declarado reiteradamente que não investirá recursos públicos diretamente porque uma competição esportiva não é de interesse público. Ao mesmo tempo, o mesmo governo estadual, diante da queixa de um grupo relativamente pequeno de moradores do bairro de Higienópolis, titubeia ante a construção de uma estação de metrô naquele local. Neste caso, porém, não pode justificar por que o interesse público na ampliação do metrô deve ceder ao interesse privado de alguns poucos.
 
Parece mesmo bem pouco questionável que o campeonato esportivo não atende ao interesse público, ao menos não da mesma maneira como escolas, hospitais, transporte coletivo etc. Se o poder público alega, para o que realmente interessa, a ausência de recursos e a “reserva do possível” como justificativa para a inércia, é inaceitável que os recursos miraculosamente apareçam para a construção de estádios de futebol. Ao mesmo tempo, parece ainda menos questionável que o metrô atende ao interesse dos mais de 10 milhões de habitantes da cidade de São Paulo e, portanto, seja “mais público” do que o interesse dos cerca de 3 mil moradores que se mostraram preocupados com o “público diferenciado” que passaria a ocupar Higienópolis. Isto, em especial, se considerarmos que a cidade de São Paulo se aproxima de um colapso no seu trânsito e continua a ter um sistema de metrô com menos de um terço da extensão de outras cidades com população similar mundo afora (Nova Iorque, Tóquio, Moscou etc.).
 
Ora, o que é “interesse público” para o governo paulista? Ao que parece, o entendimento é variável conforme a ocasião. Se se trata de construir estádio para o evento esportivo que servirá de publicidade para o governo federal do PT, o governo estadual do PSDB considera estar diante de mero interesse privado. Se se trata, por outro lado, de atender à queixa de parte da elite paulistana, representada por moradores de um dos bairros mais “nobres” da cidade, então o mesmo governo considera estar diante do interesse público. Coincidência? Ou “interesse público”, para o governo paulista, é exatamente aquilo que coincide com os interesses dos próprios membros deste governo?
 
Na verdade, a própria idéia de “interesse público” é, para qualquer governo e em qualquer instância, uma distorção. Por trás dela reside uma visão da sociedade como conjunto homogêneo, não cindido em classes, cujo representante também homogêneo é o Estado. Nada mais equivocado. O interesse na manutenção da sociedade presente e de suas formas políticas é exclusivamente da classe dominante, francamente minoritária: o interesse da maioria não encontra atendimento efetivo na ação do Estado e, de um modo geral, no interior da sociedade capitalista. No interior desta sociedade, a idéia de “interesse público”, não por acaso abusivamente vaga, só pode mesmo servir a todo tipo de manipulação e de retórica que, no fim das contas, trata sempre de vilipendiar ainda mais os interesses da maioria dominada.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 08/06/2011.]

quinta-feira, 2 de junho de 2011

[Crítica Social] Meio ambiente e politicagem

MEIO AMBIENTE E POLITICAGEM

Discussões em torno de alterações no direito ambiental brasileiro tomaram conta dos noticiários ao longo dos últimos dias. A notícia, no entanto, é duplamente infeliz: porque as alterações não são necessariamente para melhor, mas também porque a grande mídia, via de regra comprometida com que há de mais conservador no espectro político, parece preferir a oportunidade para propalar interessadamente uma “derrota” do governo do PT ao invés de aprofundar-se na investigação da situação ambiental brasileira.

Há, na verdade, pouca esperança quanto ao que se pode, pura e simplesmente através do direito, fazer a respeito. Mas a persistência de uma postura de conivência do poder público aliada a uma série de brechas pouco razoáveis na legislação ambiental certamente apenas escancara as oportunidades para uma acelerada depredação do meio ambiente.

O aspecto fundamental da questão, de qualquer maneira, não é o estatal nem o jurídico, é – ainda e inevitavelmente – o econômico. É a economia agroexportadora brasileira, assentada na monocultura e na ocupação extensiva do solo, que demanda um consumo desmedido dos recursos naturais. É esta estrutura econômica que encara desde logo qualquer barreira à destruição do meio ambiente, por mínima que seja, como “prejuízo”.

O cálculo é até bastante simples. Tal como ocorre em todos os setores da produção capitalista, o assim chamado “agronegócio” tem como único objetivo o lucro: mesmo que sua mercadoria seja o alimento, tudo o que importa, como a qualquer outra mercadoria, é que ela seja vendida com a maior margem de ganho possível. Então, quanto menores os gastos despendidos com a produção, melhor: quanto menores os salários, quanto maior a substituição de trabalho vivo por maquinário e, claro, quanto mais “fácil” a derrubada da floresta, a utilização de agrotóxicos ou a emissão de gases poluentes – maiores os lucros. Qualquer limitação a esta “liberdade” na destruição do meio ambiente significa maiores custos e imediatamente significa também menores lucros.

Por outro lado, quanto maiores os lucros do “agronegócio”, mais rapidamente caminhamos rumo ao completo esgotamento do meio ambiente. O interesse econômico de uns poucos se opõe, assim, a uma imposição vital comum a todos. É o interesse econômico, no entanto, que tem prevalecido. É o interesse econômico dos grandes produtores rurais que, acima de todos mais, tem determinado o circo da politicagem e os debates parlamentares em torno do “Novo Código Florestal”. E é também este interesse econômico sumamente egoísta que a grande mídia, pela perspectiva que “escolheu” para noticiar os acontecimentos, convenientemente trata de ocultar.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/06/2011.]