quinta-feira, 25 de outubro de 2012

[Crítica Social] Nem tribunal


NEM TRIBUNAL

Nem deus, nem césar, nem tribunal”, diz a canção dos trabalhadores desde o séc. XIX. Quanto a deuses e césares, a crítica da sociedade presente, ao menos em suas expressões mais radicais, parece ter assimilado o recado (ainda que com vacilações eventuais). Não há, de fato, o que esperar da providência ou fé, como não há o que esperar de governantes, líderes ou “heróis”: nenhuma transformação social autêntica pode provir daí e toda aposta nestes dois elementos constitui uma fuga daquele que deve ser o verdadeiro campo da luta política. Quanto aos tribunais, por outro lado, resta ainda uma estranha “confiança”.

Esta “confiança” se divide em outras duas, que funcionam como seus pontos de apoio: uma “confiança” no direito e uma “confiança” no juiz.

A “confiança” no direito tem por pressuposto uma concepção segundo a qual a luta social pode realizar-se como luta jurídica. Noutras palavras, uma concepção acerca do direito que propõe ou, ao menos, deixa margem para um papel ativo, determinante, positivo a ser desempenhado por este na transição para uma nova forma de sociedade. Portanto, uma concepção que desconsidera o caráter histórico determinado, essencialmente capitalista, das formas jurídicas. Ao fazê-lo, não toma em conta que a reprodução das formas jurídicas, ainda que “melhoradas” ou “socializadas”, não pode ser senão a reprodução da sociedade capitalista – e, em última análise, desloca a crítica daquilo que é o essencial: a luta contra a sociedade presente não pode ser a luta no direito ou por direitos, mas uma luta contra o direito.

A “confiança” no juiz (ou, de um modo geral, no aplicador do direito), por sua vez, é baseada na aposta numa interpretação e aplicação alternativas do direito, interpretação e aplicação comprometidas com questões sociais e voltadas para algo além da simples “manutenção” do existente. Esta aposta recai inteiramente sobre os ombros do aplicador do direito, apela ao seu bom senso, à sua sensibilidade ou ao seu alinhamento político na esperança de que isto abra-lhe os olhos para o “concreto” das mazelas sociais em detrimento do “abstrato” da letra da lei e da técnica jurídica. O seu fundamento é, portanto, inteiramente moral – o seu apelo se dirige, no fim das contas, à boa vontade individual – e, assim, também inteiramente inadequado, desde o princípio, à luta social.

Não, não há o que esperar do tribunal. Toda aposta numa transformação social através da aplicação do direito – na forma de “ativismo judiciário”, “direito alternativo” ou qualquer outra do gênero – toma como ponto de partida algo que, desde logo, invalida a possibilidade mesma que qualquer transformação mais profunda: a recuperação da forma jurídica. E da forma jurídica (ou pela forma jurídica) só pode provir mais do mesmo – do mesmo modo de produção capitalista.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/10/2012.]

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

[Crítica Social] Democracia, liberdade, igualdade


DEMOCRACIA, LIBERDADE, IGUALDADE

As “virtudes” da democracia costumam ser exaltadas sob o argumento de que esta forma de governo é realizadora, no mais alto grau, da liberdade e da igualdade do indivíduo. Este argumento é verdadeiro, mas cabe ainda uma pergunta: isto constitui uma “virtude”?
Na eleição, momento apoteótico da democracia, o indivíduo realiza, de fato, na condição de cidadão, a sua liberdade e a sua igualdade. Cada um decide o seu voto livremente, faz a escolha livre entre as opções dadas. E cada voto, uma vez depositado, tem o mesmo peso, é exatamente igual a todos os demais votos depositados. O resultado é decidido pela simples somatória, escolha livre de uma maioria composta por iguais.

Ora, este exercício democrático da cidadania se realiza sob as mesmas bases da liberdade e da igualdade jurídicas. O centro de gravidade é, em ambos os casos, o indivíduo “socialmente isolado” portador de vontade autônoma, abstratamente igualado a todos os demais indivíduos: sujeito de direito por um lado, cidadão por outro. E isto significa dizer: o centro de gravidade é, em ambos os casos, a subjetividade que constitui o “outro lado” da mercadoria – a subjetividade que faz a sua vontade habitar a coisa inanimada, que constitui o lado voluntário da troca de mercadorias e que se coloca como mediação necessária da relação de produção capitalista.

O fundamento último desta liberdade é, assim, a livre disposição da propriedade – ainda que esta se resuma à propriedade da própria força de trabalho, colocada à disposição do capital, ou seja, livremente submetida à exploração. E o fundamento último desta igualdade é a capacidade de ser proprietário – ainda que o indivíduo em questão não seja proprietário de nada e, assim, seja constrangido a sobreviver da venda da “propriedade” de si mesmo.

Noutras palavras, esta liberdade e esta igualdade são as categorias engendradas pela produção capitalista que, na sua essência, só pode mover-se através da exploração do trabalho e da reprodução de uma profunda desigualdade. São a liberdade e a igualdade que se resolvem na redução voluntária do homem à condição de mercadoria e na equivalência “em direitos e deveres” entre classes sociais que se opõem no processo de produção como exploradora e explorada.

Como forma de governo realizadora da liberdade e da igualdade, a democracia não faz, então, mais do que realizar as categorias típicas da exploração do trabalho pelo capital. Trata-se de uma forma de governo plenamente fundada na forma sujeito de direito e movida pela ideologia jurídica. Trata-se, por isso mesmo, de uma forma de governo cujo vínculo histórico e social concreto é evidente – e este vínculo é, ao mesmo tempo, o seu limite: a sociedade capitalista. Qualquer aposta na democracia como “valor universal” é, portanto, uma falácia. Qualquer aposta nas “virtudes” da democracia é, em última instância, um engodo: a sua única “virtude” é a reprodução do presente e de tudo que há nele de menos “virtuoso”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/10/2012.]