quarta-feira, 24 de julho de 2013

[Crítica Social] Habemus papam

HABEMUS PAPAM

A visita ao país do Papa Francisco I, soberano da monarquia absoluta teocrática do Estado da Cidade do Vaticano, é notícia onipresente nos veículos de comunicação. As supostas virtudes de Sua Santidade, sobretudo uma “simplicidade” tão convenientemente demonstrada, são exaltadas a cada instante. Imagens de manifestações exageradas de devoção e de fanatismo das multidões que seguem o sumo pontífice inundam os noticiários: provas da grande e inabalável “fé” dos brasileiros, é o que dizem. Provas, sem dúvida, da grande influência que a religião ainda exerce entre nós em questões não religiosas, sobretudo políticas.

Nesse sentido, a sensacionalismo midiático sobre a visita do papa não pode elidir problemas fundamentais. Limitemo-nos a dois questionamentos aparentemente deixados de lado.

Em primeiro lugar, a despeito do misticismo que envolve o cargo, o papa é líder de uma instituição, a Igreja Católica – instituição que, a despeito do misticismo que a envolve, atua neste mundo. Essa atuação envolve influência, poder, dinheiro. Não é demais lembrar que a instituição Igreja é uma das maiores proprietárias fundiárias do mundo, que recolhe anualmente somas vultosas de recursos de seus seguidores e que sustenta uma estrutura gigante e global. Também não é demais lembrar que, pouco tempo atrás, essa mesma instituição ocupava os noticiários com manchetes muito diversas: escândalos sobre suas finanças, denúncias seríssimas a respeito da atuação mundana do poderoso “Instituto para as Obras da Religião” (ou Banco do Vaticano) etc. Nada poderia ser mais conveniente para abafar tais escândalos do que um carismático garoto-propaganda das virtudes “franciscanas” – mas o que as virtudes de um único homem (mesmo que autênticas, o que sequer vem ao caso) alteram nas práticas mundanas efetivas da Igreja? Ou, ao contrário, a propaganda da “simplicidade” é apenas uma maneira de perpetuar as mesmas práticas longe dos holofotes?

Em segundo lugar, o sorriso fácil do papa e os seus gentis discursos sobre fraternidade, solidariedade e amor ao próximo não mudam o lugar que a influência religiosa ocupa no espectro das posições políticas no cenário contemporâneo. Não são, via de regra, posições de esquerda ou sequer progressistas. Ao contrário, argumentos de inspiração religiosa são os principais pontos de apoio de algumas das posturas mais retrógradas de que dispomos: contra a legalização do aborto, contra a pesquisa científica que envolve o genoma humano, contra a emancipação feminina, contra os direitos dos homossexuais etc. A influência da religião na política não tem levado a nenhuma exigência de transformação social, a nenhum clamor efetivo por mudança radical – na melhor das hipóteses, tem levado a uma proposta vaga de moralização da política, tradicional bandeira da direta. Noutras palavras, a influência da religião tem servido a uma política conservadora. Não seria, então, o momento de propor, ao invés de uma aproximação, uma emancipação da política quanto à religião? Ou, mais precisamente, uma política verdadeiramente laica?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/07/2013.]

quarta-feira, 3 de julho de 2013

[Crítica Social] Ainda sobre as manifestações

AINDA SOBRE AS MANIFESTAÇÕES

I – A estratégia adotada pela grande mídia para “anular” as manifestações foi muito mais eficiente do que aquela da tropa de choque. De um dia para o outro, a TV e os grandes jornais passaram a “apoiar” o movimento, com a ressalva explícita de que seriam “legítimos” apenas os protestos pacíficos. Com isso, o movimento rachou entre uma “maioria” de “pacifistas” e uma “minoria” de “baderneiros” que se “infiltravam” apenas para causar desordem e depredação. A “maioria” passou logo a ser pautada pelos telejornais e se transformou num freio mais forte do que balas de borracha contra qualquer possibilidade de radicalização das manifestações.

II – Imediatamente após a redução das tarifas do transporte público, o movimento perdeu a pouca unidade que tinha. Uma enorme somatória de exigências inteiramente fragmentadas e contraditórias tomou as ruas. Uma série de pautas “apolíticas” e até mesquinhas passou a desviar a atenção quanto ao principal: desde maus-tratos aos animais até redução do imposto de importação para eletrônicos. Instalou-se, com o aplauso da mídia, uma aversão a “ideologias” – mas o silêncio das “ideologias” é sempre o território da direita. O nacionalismo inconsequente das multidões enroladas na bandeira e cantando o hino nacional, simbologia típica da extrema direita, é a prova cabal disso.

III – Instalou-se igualmente uma aversão generalizada aos partidos políticos. Mas essa aversão se dirige, no fundo, contra qualquer forma de unificação e organização do movimento. Assim, as manifestações canalizaram uma enorme massa de insatisfação reprimida, mas essa insatisfação foi acompanhada de uma recusa ativa (e por vezes agressiva) a tomar consciência de suas causas e dos meios adequados para levar adiante as suas exigências. Não se percebeu que os partidos que foram para a rua (e que foram hostilizados pela “maioria” “pacifista” e “sem ideologia”) eram sobretudo partidos de esquerda (que, cada um ao seu modo, pleiteiam mudanças) – e, por outro lado, isto permitiu a apropriação do discurso do movimento por partidos de direita (que pretendem bloquear qualquer mudança efetiva e que são, portanto, “inimigos” do movimento).

IV – Ainda assim, não deixa de ser interessante observar o terror instalado entre os detentores do poder político diante da simples visão das massas tomando as ruas. Esse terror tem uma causa óbvia: o potencial maior de transformação social radical reside precisamente no movimento de massas, que toma as ruas para fazer as suas exigências fora dos mecanismos institucionais da democracia estabelecida (que garantem de antemão a esterilidade de qualquer participação política). Infelizmente o discurso vago do movimento tende a tornar possível responder aos clamores das ruas com propostas igualmente vagas de “reforma política”.

V – Mais ainda, não deixa de ser interessante observar o pânico das elites brasileiras. Os sintomas desse pânico apareceram de diversas maneiras: nos boatos espalhados nas redes sociais sobre um novo golpe militar, na reacionária crítica de Arnaldo Jabor veiculada num telejornal da Globo (e prontamente retificada logo a seguir), num texto nonsense publicado na Veja em que uma professora da USP censura o movimento por ser composto por jovens que foram “mimados” na infância etc. Ora, trata-se da reação “natural” daqueles que se acostumaram a estar do lado vencedor diante do simples vislumbre, ainda que muito remoto, de uma virada de mesa.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 03/07/2013.]