quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A morte e a morte de Evgeni Pachukanis

A MORTE E A MORTE DE EVGENI PACHUKANIS

No ano do centenário da Revolução Russa, Pachukanis foi lembrado. Sua principal obra, A teoria geral do direito e o marxismo, teve, certamente não por acaso, depois de um hiato de 28 anos, duas traduções lançadas quase que simultaneamente nos últimos meses (a primorosa edição da Sundermann inclui ainda textos anteriormente inéditos em português).

É conveniente que assim seja: o texto de Pachukanis é o núcleo de todo o pensamento marxista sobre o direito e é, portanto, imperioso que ele esteja acessível e que seja levado em consideração. Mas Pachukanis é um jurista maldito, aparentemente condenado a ser esquecido, e mesmo a sua “lembrança”, qualquer que seja a ocasião, não é de todo algo a comemorar.

Lembremos, antes de tudo, que Pachukanis foi morto. Um certo destino trágico dos revolucionários, aquele de ser ceifados por suas próprias revoluções, não o poupou. Trágica e contraditoriamente, o caráter revolucionário da sua obra, a radicalidade de seus argumentos, o peso e a justeza de suas conclusões foram determinantes para a sua morte. E isso deve nos lembrar, por sua vez, dos equívocos da Revolução Russa.

A eliminação da figura de Pachukanis foi seguida, na URSS, da proibição de sua obra. Apenas décadas depois, reabilitada, voltou a circular. Seu percurso por entre os debates teóricos desde então foi e tem sido, para dizer o mínimo, errático. Pouco lida, pouco compreendida, muito raramente levada a sério, a obra de Pachukanis parece presa em algum limbo entre duas rejeições: para os marxistas, trata-se de uma obra “jurídica” que, por consequência, é indevidamente descartada de todos os grandes debates e, de outro lado, para os juristas, trata-se de uma obra marxista e isto, por si só, obstrui qualquer acesso ao ambiente essencialmente conservador e pouco dado à reflexão que constitui, no mais das vezes, os cursos de direito. A retomada de sua obra, porém, não rompe necessariamente com esse quadro.

A morte de Pachukanis parece não cessar. Nesse mesmo ano em que completam-se 100 anos da Revolução Russa, completam-se 80 desse lamentável episódio. Nesses 80 anos, Pachukanis continuou a ser morto e continua – diria que mais intensamente, se é que isto é possível – ainda agora.

Pachukanis continua a ser morto quando sua obra é retomada por uma série de leituras tortas, falseadoras, impacientes ou pouco inteligentes. Quando, por incompreensão ou deturpação consciente, a sua obra é tomada apenas parcialmente, equivocadamente, distorcidamente, enfim, é tomada por aquilo que ela não é.

Pachukanis continua a ser morto quando sua obra é retomada apenas para ser declarada, mais uma (e provavelmente não a última) vez, dentre tantas e tantas vezes, como “superada”. Quando os mesmos velhos motivos para tal “superação” são reciclados e, sob qualquer roupagem dita nova, apresentados novamente sem demonstração. Quando uma mera declaração de intenções por uma refundação, renovação, reformulação, renascimento etc. do marxismo ou da crítica marxista do direito exige – sem demonstração, insisto – que é necessário negar, esquecer ou ir além de Pachukanis. E isto sempre, qualquer que seja a “novidade” da vez, pelo mesmo velho motivo: na impossibilidade de desmontar ou contradizer o argumento de Pachukanis – e, portanto, de demonstrar a sua “superação” – é necessário, para livrar-se, por conveniência, de suas conclusões – em última medida, invariavelmente, a questão da extinção do direito e do Estado – dizê-lo “superado”.

Pachukanis continua a ser morto quando sua obra é retomada apenas para que a façam dizer aquilo que ela não diz. Quando, por alguma “adaptação” “criativa” ou puramente falseadora, por uma leitura tosca ou por má consciência, a crítica essencialmente radical de Pachukanis é indevidamente mitigada. Quando Pachukanis é, então, retratado como defensor, em qualquer medida que seja, do direito (ainda de que um direito “melhorado”, “alternativo”, “socialista” ou o que o valha) e, portanto, é reconciliado com algum modelo qualquer de reformismo. Como nenhum reformismo pode declarar-se como tal, essas “adaptações” têm que ser sempre sub-reptícias, têm de pautar-se sempre no mesmo recurso de apresentar um Pachukanis que não existe. Mas não pode haver algo – e não há outras palavras para dizê-lo – mais frontalmente contrário àquilo que Pachukanis propõe do que a conciliação ou mesmo a tolerância com o reformismo.

Por fim, Pachukanis continua a ser morto quando sua obra é retomada apenas como “escada” para promover outras ideias, outras teorias, em geral alheias, ou mesmo contrárias, ao próprio Pachukanis. Em última medida, quando o nome de Pachukanis é usado para promover egos nesse enorme turbilhão de vaidades que é o meio acadêmico brasileiro. Numa sociedade capitalista (ou mesmo capitalista de Estado, como o próprio descobriu tristemente), ninguém que, a rigor, defenda as teses de Pachukanis há de beneficiar-se, em qualquer grau, disso. No pequeno universo da academia (ao menos no campo do direito, não saberia dizer se o mesmo se aplica a outras áreas), porém, apropriar-se de um autor e tornar-se seu “representante oficial”, sua “voz autorizada”, pode ser muito vantajoso como forma de autopropaganda – mesmo quando a “voz autorizada” propaga algo muito ou muitíssimo diverso da sua suposta fonte autorizadora.

O esforço por cavar a sepultura de Pachukanis não cessa: para nela atirá-lo ou para dela tirá-lo, de novo e de novo. Pois Pachukanis não cessa de ser morto – ou, a rigor, de ser sepultado vivo. A despeito de todo o empenho contrário, sua obra permanece de pé. Seus argumentos mantêm pleno vigor. O que se retira de sua sepultura não é, portanto, apenas o seu cadáver. E tudo que posso esperar é que continue havendo, na contramão de tudo, aqueles com disposição para fazê-lo.